Sempre a mesma história: mais uma vítima da violência policial, mais uma vez, os suspeitos usuais, insistem na velha ladainha de que é preciso "modernizar" as polícias brasileiras.

Contudo, se olharmos bem, a polícia brasileira (todas) é a própria definição da "modernidade".
Quando olhamos para a história da segurança pública brasileira, o desenho que ela sofreu a partir dos anos 60-70, compreendemos que ela faz parte de uma operação militar, a chamada Doutrina da Guerra Revolucionária.
A doutrina, criada pelos franceses para massacrar os movimentos insurgentes na Argélia e aperfeiçoada pelos estadunidenses no Vietnã, tem como seu fundamento uma guerra contra uma força que se confunde com a própria população que busca defender.
O "inimigo" de uma nação se confunde com a própria nação, ao contrário da guerra tradicional. Nesse contexto, a violência do Estado tinha um papel fundamental: instaurar o terror.
A tortura, o desaparecimento forçado e o assassinato de opositores políticos geralmente é visto de um prima individual, nos concentramos - com boa razão - na tragédia pessoal das vítimas e famílias. Mas existe uma outra dimensão importante.
Em todos os regimes que adotaram essa política sempre existiu um complexo jogo de exposição e ocultação das violências perpetradas pelo Estado. E não estamos falando apenas da mídia aqui, estamos falando de estratégias de comunicação amplas.
No Brasil da Ditadura Militar, por exemplo, todo mundo que se tornava militante de partido sabia desse risco - inclusive se organizavam para mitigá-lo -, mas não apenas, no campo também era assim. Todo mundo meio que sabia o que acontecia com aqueles que se opunham ao governo.
E isso tinha um efeito óbvio: impedir, pelo terror, que movimentos insurgentes se estabelecessem. Afinal, quantos estão realmente dispostos a enfrentar sessões de torturas?
Com o "fim" da Ditadura Militar, as nossas forças policiais mudaram o seu alvo: se antes o comunismo era a principal ameaça ao Estado, agora a ameaça era o "crime organizado", o "tráfico de drogas".
Os anos 80/90 foram marcados por essa verdadeira obsessão midiática. O crime organizado se tornou o responsável por todas as mazelas da sociedade, enquanto enfrentávamos as primeiras ondas do neoliberalismo.
E aqui um detalhe crucial: com a abertura política, a violência do Estado, que sempre foi um tema presente no mundo fora da mídia, ganhou as páginas dos jornais. Chacina em favela nunca foi novidade no Rio de Janeiro, a novidade foi a cobertura jornalística.
Assim, o salamaleque de poder do Estado, sua máquina de terror, foi se tornando entretenimento. A emergência dos noticiários dedicados ao tema não é uma coincidência. Sempre bom lembrar que o programa do Ratinho começou assim.
Se fala muito do Tropa de Elite, mas quem é do Rio de Janeiro sabe que vídeos de operações policiais sempre foram uma espécie de entretenimento do submundo. DVDs piratas com "as melhores do BOPE" sempre foram um sucesso de vendas.
E aqui chegamos ao ponto: com o avanço do neoliberalismo tivemos a emergência de um niiliberalismo (niilismo + liberalismo) marcado por uma redução crucial do estado ao campo da segurança pública.
Contudo, uma segurança pública completamente ineficaz, cujos resultados "positivos" não sobrevivem a um simples "não é bem assim".

Então o que resta? O espetáculo, apenas. O terror do estado convertido em entretenimento das massas.
Quem acompanha o submundo dos zaps e grupos de whatsapp sabe da força desse material. Mais uma vez, não é coincidência que a política brasileira atual seja profundamente marcada por essa experiência.
Não é coincidência que tenhamos um presidente reduzido ao papel de um entertainer genocida. Não se enganem, isso não é um "sintoma do atraso" - sempre a mesma teleologia liberal -, isso é o que há de mais novo, a última onda do neoliberalismo.
Por isso não se trata de "modernizar" as polícias, mudar sua formação, seus protocolos de atuação. Isso não é nem redução de danos - pois eles não vão agir de outra forma. É importante agir de forma ainda mais profunda, impedindo a sua atuação, a sua participação nesse espetáculo

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