Ultimamente tenho visto grande polarização acerca do polêmico tema "Maconha medicinal". De um lado, a demonização de qualquer produto relacionado à Cannabis, como se o estudo científico da planta fosse um estímulo ao "uso de drogas". Do outro, a bajulação da planta como panaceia+
Acredito que sobre o uso medicinal, a forma de resolver essas falsas dicotomias seja se apoiar nas práticas baseadas em evidências e na racionalidade científica.
Primeiramente, não existe "maconha medicinal". Maconha, por definição, se refere a partes da Cannabis ricas em THC...
... usadas com finalidade recreativa na tentativa de alterar "estados mentais". Quando falamos de uso medicinal, estamos nos referindo ao uso da Cannabis (uma combinação de substâncias químicas), de elementos isolados (como canabidiol) ou de análogos sintéticos desses componentes
Não vou entrar no mérito sobre a legalização da maconha "não-terapêutica". A liberação para o uso recreativo é uma discussão diferente dessa, envolve aspectos políticos e sociais importantes e avaliação de outros tipos de consequência a longo prazo. O foco aqui é o uso medicinal.
O primeiro passo é pensar mais de maneira científica, e menos de maneira ideológica. Não há motivo para conservadorismo barato e receio de explorar a Cannabis terapeuticamente. Temos usado opioides há muito tempo na medicina, com sucesso, mesmo com sua origem no ópio/papoula.
O discurso: "Ah, mas se começarmos a liberar uso medicinal, em breve as pessoas vão estar fumando maconha em todo lugar" não passa de uma falácia "da bola de neve". Não é isso que deve regular o uso medicinal. Precisamos de critérios mais técnicos.
Por outro lado...
...o discurso de que a Cannabis seja uma espécie de "superfitoterápico" capaz de tratar inúmeras doenças e provocar resultados milagrosos é igualmente ideológico e falacioso. Ninguém vai sair por aí fumando maconha e curando doenças. Aliás, fumar algo jamais vai ser medicamento.
"Mas André, povos antigos fumavam a cannabis tradicionalmente para curar doenças". Sim, verdade. Assim como povos antigos sacrificavam virgens aos deuses para melhorar as colheitas. Tradição não implica em eficácia. Mas ensaios clínicos bem conduzidos podem nos dar mais respostas
De fato, muitos estudos tem sido conduzidos sobre o tema. Estudos maiores serão conduzidos à medida que o "tabu" e o preconceito sobre a cannabis diminuam. E, embora muitos desses estudos possuam plausibilidade e sejam promissores, evidências que suportem prescrições são escassas
Isso significa que temos que tomar cuidado com a inversão do ônus da prova. O mesmo rigor científico que temos que ter com cloroquina e suas promessas milagrosas na pandemia, temos que ter com qualquer outro tratamento, incluindo a Cannabis medicinal. Precisamos ser racionais.
Há evidências promissoras, mas a maioria limitada, oriunda de estudos exploratórios que ajudam a levantar boas hipóteses que necessitam de estudos confirmatórios. O caminho mais desbravado até o momento parece ser o do canabidiol para tipos específicos de epilepsia refratária.
Tratamentos sintomáticos (não da evolução da doença) em esclerose múltipla, ganho de peso pra pacientes específicos e talvez o auxílio no tratamento de alguns tipos de dor possuem algum respaldo na literatura. Ao contrário do que se pensa, não há recomendação para tratar glaucoma
Qualquer tipo de promessa, em especial as "milagrosas", deve ser evitada de ser comunicada, sob risco de estimulação de automedicação irracional além do cuidado em não alimentar falsas esperanças em pacientes já vulneráveis pela sua própria condição. Temos que ser responsáveis.
Se eu pudesse resumir em uma frase a questão da "Cannabis medicinal", esta seria: "Menos preconceito e mais racionalidade". É isso que precisamos para conquistarmos novos avanços que tragam benefícios que superem os custos para nossos pacientes e nossa sociedade.

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30 Jul
Quando falam que construções antigas foram feitas por Aliens (que tem a tecnologia suficiente pra fazer viagens interplanetárias ou quiçá intergaláticas) fico imaginando eles conversando:
- Aroldo, bora viajar ali pra quele planeta com uma vida primitiva chamado Terra?
+
- Mas o que a gente vai fazer lá, Jorge (traduzi os nomes porque era impronunciável em língua alienígena)?
- Empilhar umas pedras, assustar uma galera com o neon novo que instalei na nave, abduzir um pessoal ali...
- Se for pra empilhar pedra igual da última vez eu não vou.
- Por quê?
- Eu fiquei cortando pedra, calculando, encaixando blocos perfeitamente pra fazer várias pirâmides. Deu maior trabalho. Pelo menos ficaram fodas, modéstia à parte, dá uma olhada na foto: Image
Read 5 tweets
21 Jun
Quantas vezes você ouviu que no Brasil tem gente notificando COVID-19 em excesso? Ou que outras doenças matam mais que Covid? Ou que "parece que agora só morre gente de Covid", entre outros argumentos para dizer que nossa situação no Brasil não é tão ruim.

(continua...)
A todo momento enviam isso no seu WhatsApp junto a estimativas de mortes por Covid em comparação com outros países, para minimizar o que estamos vivendo aqui. Isso quando não citam "o placar da vida" que comemora o gol que fizemos na Alemanha e não mostra os 7 gols que levamos.
O número de mortos, independentemente de comparações já é uma tragédia por si só que merece toda nossa atenção e empatia. Mas se ainda assim existe esse interesse e necessidade em comparar, temos que começar comparando o Brasil pandêmico com o Brasil anterior à pandemia.
Read 11 tweets
19 Jun
Quando escrevi o livro Desafios Toxicológicos (lançado no início de 2020), o caso de Bob Marley me chamou tanto a atenção, que utilizei um tópico deste capítulo para falar de teorias da conspiração. Mal sabia eu que formularíamos teorias muito mais loucas alguns meses depois... Image
Bob Marley morreu em decorrência de um melanoma (um tipo mais "agressivo" de câncer de pele) metastático que se "espalhou" para os pulmões e para o cérebro.

Bob descobriu o melanoma ao acaso, pois o mesmo estava localizado sob a unha do dedão do pé...
Em um acidente durante uma partida de futebol, sua unha teve que ser removida, e ele foi diagnosticado.
Embora orientado pelos médicos a amputar o membro, ele se recusou, por motivos não claros (mas que parecem ter sido religiosos e/ou também por afetar sua performance artística)
Read 11 tweets
15 Jun
Essa maluquice sobre grudar moeda no braço após a vacina é na verdade um episódio muito didático de como nosso cérebro é muito criativo para enxergar padrões onde não existem.

Então deixo aqui 5 lições pedagógicas que podemos aprender com essa fake news:
1 - Se o evento B (moeda grudar) acontece logo após o evento A (vacinar), não significa que o evento A provocou o evento B. Correlação não implica em causalidade. 100% das pessoas que morreram, tomaram se hidrataram pouco tempo antes de isso acontecer. Mas beber água não mata.
2 - "O barulho de cascos que você ouve atrás de você geralmente não são de zebras". Ou seja, é muito mais provável que haja uma explicação mais simples. Que sejam cavalos.
Busque a explicação simples primeiro. Deixe a explicação maluca pros roteiros de ficção.
Read 6 tweets
15 May
Quando qualquer um de nós se depara com uma fórmula dessas, a primeira reação é "torcer o nariz".
Mas e se eu te falar que a aplicação desse raciocínio traz mais lucidez e racionalidade para interpretar artigos científicos?

Abra o seu coração para a palavra do reverendo Bayes
Thomas Bayes foi um pastor presbiteriano do século XVIII, que veio a se tornar posteriormente famoso pelo "Teorema de Bayes", resumido na fórmula do tweet anterior.
Bayes desenvolveu a probabilidade condicional para tentar inferir a probabilidade subjacente a partir da observação
Não tá entendendo nada? Eu também demorei pra entender. Quando ele explicou isso para os outros, ninguém entendeu também. Por isso é mais fácil explicar isso por meio do experimento que originou o seu Teorema. Foi necessário apenas uma mesa e duas bolas. E uma mente brilhante.
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13 May
#FarmacoNumTweet

A Dependência é um fenômeno complexo. Além dos aspectos neurobiológicos, o comportamento, a genética e o ambiente são cruciais para o desenvolvimento do quadro.

Vamos entender um pouco mais sobre esses aspectos neurobiológicos? Segue o fio!
Embora estes são sejam os únicos elementos envolvidos no processo de dependência e não possamos avaliar este fenômeno de modo descontextualizado, é fato que sem uma droga capaz de provocar dependência ou sem um cérebro capaz de se tornar dependente, não haveria dependência.
A dependência pode ser descrita como uma transição de ações impulsivas (incapacidade em adiar recompensas) para ações compulsivas (uso contínuo da droga, apesar das consequências negativas). O uso inicial da droga é geralmente voluntário, ligado à traços de impulsividade...
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