Imagine que você é convidado a participar como voluntário em um estudo científico sobre uma nova droga e, por alguma razão (em geral, fama ou dinheiro) os pesquisadores têm interesse em fazer esse remédio “dar certo”.

Um fio sobre o viés de alocação e sobre pensamento crítico.
Se fala aos quatro ventos que o padrão ouro da ciência é o estudo duplo-cego, randomizado, placebo-controlado.
O que não se fala é que não basta esse estudo existir que automaticamente deve ser aceito pela comunidade médica.
Ele precisa passar por avaliações metodológicas
Ser duplo-cego e randomizado significa que nem a equipe médica nem os pacientes sabem a que braço do estudo o paciente será alocado. Isso é feito para evitar subjetividades no processo, como a que eu citei no primeiro tweet.

Agora eu pergunto: você acredita em tudo que falam?
É que se um pesquisador quer fraudar um resultado, é óbvio que não vai escrever no artigo “oi gente, fraudei aqui”.
E como alguém pode fraudar um estudo?
De várias maneiras, entre elas, a mais fácil, é simplesmente não fazer cegamento ou randomização alguma, mas escrever que fez
Há maneiras mais rebuscadas, por exemplo:
Se um pesquisador sabe para qual grupo o próximo paciente inscrito irá ser alocado (mesmo que o restante da equipe não saiba), ele pode recusar pacientes que julgue que o resultado será diferente da narrativa que ele propõe.
O pesquisador pode dizer que deixou os pacientes cegos, mas entrega a eles um envelope meio transparente ou de fácil abertura.

Em resumo, há muitas maneiras de fraudar ou acabar tendo inconvenientes nesse cegamento.
E essa fraude (ou erro, quando é não intencional), conhecido como viés de alocação, pode enviesar fortemente o resultado dos estudos científicos que você lê.

Essa figura mostra o que pode ocorrer se houver más intenções no processo.
Como disse, o pesquisador não será ingênuo a ponto de escrever no seu artigo ou confessar em suas redes que fraudou o estudo.

Mas há maneiras de desconfiar disso.
1. Quanto maior o interesse financeiro e político, maiores as chances de o resultado de um estudo ser falso.
2. Quanto mais quente o tema, maiores as chances do resultado ser falso.
Isso é meio óbvio, sim? Nem acredito que eu preciso explicar isso. E também não preciso apontar que estou falando de “chance”, não de algo determinista.
Dá pra ganhar muito dinheiro enganando o povo.
3. Quanto mais milagroso soar o efeito, maiores as chances de ser falso.
Para resultados extraordinários, exigimos evidências extraordinárias. Ou, de novo, você acredita em tudo o que te falam?
4. Quanto mais “tirado da cartola” (ou seja, menos plausível e coerente) um mecanismo proposto para que um fármaco funcione, maiores as chances de ser falso.

De novo, “chance”. Mecanismos desconhecidos podem funcionar e mecanismos que julgamos bem conhecidos podem decepcionar.
Entendeu por que desprezo charlatões que perguntam “mas o estudo duplo cego não era o que você queria?”, esquecendo propositalmente que pode haver fraudes e até erros não intencionais no processo?

É por isso que eu sugiro que você comece a fazer o mesmo.

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15 Sep
Em Medicina, existe uma limitação poucas vezes confessada em consultório (porque isso quase que invariavelmente se traduz em demonstração de fraqueza): é que esse é um ofício de incerteza.

Nesse fio, eu discorro sobre a natureza probabilística da Medicina.
A Medicina é uma ciência da incerteza porque:

1. Trabalhamos com incerteza na interpretação de exames
2. Trabalhamos com incerteza na interpretação da resposta dos pacientes às terapias

Vou explicar ambos.
1. Incerteza na interpretação de exames:

Nas mãos de um médico minimamente bem formado, a interpretação de um exame não é “positivo x negativo”, mas “verdadeiro x falso positivo, verdadeiro x falso negativo”.
Só isso já acrescenta uma camada de dificuldade maior à profissão.
Read 12 tweets
14 Sep
Um congresso on-line com várias autoridades discutindo diferentes aspectos da Medicina. Esse é o Sanarcon 2021. E vai acontecer esse sábado, 18 de setembro.

Vou elencar aqui algumas razões para você, médico ou estudante, não perder esse congresso de altíssimo nível. Segue o fio.
A querida Natalia Pasternak (@TaschnerNatalia) vai falar sobre "Ciência no cotidiano", tema que dá nome a um dos seus livros.

Ela vai trazer razões pelas quais nós devemos ser críticos e educados quando analisamos evidências científicas.
Seguindo a mesma linha, Luis Correia (@LuisCLCorreia), uma verdadeira inspiração para mim e muitos outros médicos, falará sobre a "Incerteza na Medicina".

Esse é um tema da maior importância, visto que nossa ciência é uma arte de probabilidades e não há como fugir disso.
Read 10 tweets
13 Sep
O curioso caso dos exames que não servem para nada.

Fiz um quiz no twitter em que perguntava para que serviam exames com esses perfis de acurácia:

Bem, esses exames não servem para NADA, literalmente. E eu vou te mostrar a razão nesse fio.
"Mas, professor, eu fui ensinado que um teste sensível descarta e um específico confirma uma doença"
"Até caiu na minha prova de residência..."

Você foi ensinado errado e as provas de residência são desconectadas da realidade (desculpa ser eu a te dar esse toque).
"Lá vem você falar que sensibilidade e especificidade são inúteis, quando, na verdade, elas que calculam a razão de verossimilhança que você defende"

Sim. Porque útil é a razão de verossimilhança.
Sensibilidade e especificidade não só são inúteis, como atrapalham ao confundir.
Read 19 tweets
5 Sep
Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.

Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.

Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.

O médico que só trabalha com esses valores está despreparado para exercer raciocínio clínico.
Vamos a uma enquete em que isso se provará verdade:

1. Sabendo que a especificidade do ECG para diagnosticar oclusões coronárias agudas é 97%, qual a probabilidade de uma pessoa aleatória ter supra de ST e não ter infarto?
A resposta correta a essa pergunta é “impossível saber” por conta de um simples fato:

- Sensibilidade e especificidade partem de um dado que o clínico, na maioria das vezes, não sabe:

Quem é doente? Quem não é doente?
Read 14 tweets
4 Sep
Para a bolha do meu Twitter:

- Para o clínico, sensibilidade e especificidade (essas duas informações apenas, e nada mais):
Ainda para a minha bolha:

- A maioria dos médicos:
E por último:

- O ensino médico, em geral, deixa claro o problema nessa questão e ensina método bayesiano probabilístico de interpretação de exames, dando ao aluno condições de perceber que está aprendendo algo insuficiente.
Read 4 tweets
17 Aug
Uma das frases mais distorcidas por médicos leigos e charlatões é a máxima “a clínica é soberana”.
Essa frase deve guiar as atitudes de todos os médicos diariamente. E não é compreendida por muitos.

O que significa, então? Segue o fio.
1. Que a clínica é superior à cirurgia.
Não, cara pálida. (Para quem não é médico: existe uma implicância boba entre as duas especialidades).
Cirurgiões, obstetras, veterinários… todo mundo que lida com diagnósticos e tratamentos deve ser subordinado à clínica.
2. Que a clínica é superior à Medicina Baseada em Evidências.
Frases do tipo “quem sabe mais é quem tratou 300 pacientes ou quem tá sentado numa mesa avaliando estudos?” levam a crer que a ~atividade clínica~ é superior às evidências.
Também não é assim.
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