Em Medicina, existe uma limitação poucas vezes confessada em consultório (porque isso quase que invariavelmente se traduz em demonstração de fraqueza): é que esse é um ofício de incerteza.
Nesse fio, eu discorro sobre a natureza probabilística da Medicina.
A Medicina é uma ciência da incerteza porque:
1. Trabalhamos com incerteza na interpretação de exames 2. Trabalhamos com incerteza na interpretação da resposta dos pacientes às terapias
Vou explicar ambos.
1. Incerteza na interpretação de exames:
Nas mãos de um médico minimamente bem formado, a interpretação de um exame não é “positivo x negativo”, mas “verdadeiro x falso positivo, verdadeiro x falso negativo”.
Só isso já acrescenta uma camada de dificuldade maior à profissão.
Mas há outra camada ainda mais profunda: a maioria dos médicos acredita que “sensibilidade” e “especificidade”, duas características presentes em todos os testes da Medicina, são úteis para a interpretação de exames.
O problema disso é que, ao usar esses parâmetros, o médico não leva em consideração a clínica do paciente. É que, como expliquei diversas vezes, a interpretação de qualquer exame OBRIGATORIAMENTE tem que partir da probabilidade clínica da doença.
É literalmente impossível avaliar exames de outra forma que não seja essa. O que significa que “bateria de exames”, “check-ups”, exames solicitados antes da consulta, exames solicitados pelo paciente...
Tudo isso funciona muito pouco ou nada. Lamento ser eu a te dizer isso.
E uma limitação real da Medicina (e não do método) é que às vezes o médico simplesmente desconhece uma variável da fórmula: a probabilidade pré-teste.
De novo: essa é uma limitação da vida, não do método.
Não se justifica usar o método errado porque a vida te impõe um problema.
2. Incerteza na interpretação da resposta a tratamentos:
Na vida real, dificilmente pode-se dizer que houve cura de um paciente.
- A mortalidade de um infarto sem aspirina e sem reperfusão é de 13% e com eles é de 8%.
Como saber se um sobrevivente não é um daqueles 87%?
- No NINDS 2, sem medicação, 39% dos pacientes com AVC melhoraram. Com medicação, 47%.
Se um paciente fica sem sequelas, como afirmar que foi o trombolítico que levou a esse desfecho e o paciente não seria um dos 39% que já ficaria bem?
- A probabilidade de morrer por coronavírus tem sido de 2,8% (no Brasil). Se alguém tomou ivermectina/cloroquina/qualquer bizarrice e se curou, como afirmar que foi a bizarrice que lhe curou? Como afirmar que ele não seria um dos 97,2% que sobrevivem?
A única forma de saber isso é com estudos científicos, como o dois primeiros exemplos em que se comprova que há uma REDUÇÃO DE PROBABILIDADES quando se usa o remédio.
Medicina de verdade é isso: uma arte das probabilidades.
O que Medicina não é?
- Esse exame foi positivo, portanto você tem a doença;
- Esse exame foi negativo, portanto você pode visitar seus avós;
- Eu tomei esse remédio e me curei;
- Eu dei esse remédio e curei o meu paciente.
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Um congresso on-line com várias autoridades discutindo diferentes aspectos da Medicina. Esse é o Sanarcon 2021. E vai acontecer esse sábado, 18 de setembro.
Vou elencar aqui algumas razões para você, médico ou estudante, não perder esse congresso de altíssimo nível. Segue o fio.
A querida Natalia Pasternak (@TaschnerNatalia) vai falar sobre "Ciência no cotidiano", tema que dá nome a um dos seus livros.
Ela vai trazer razões pelas quais nós devemos ser críticos e educados quando analisamos evidências científicas.
Seguindo a mesma linha, Luis Correia (@LuisCLCorreia), uma verdadeira inspiração para mim e muitos outros médicos, falará sobre a "Incerteza na Medicina".
Esse é um tema da maior importância, visto que nossa ciência é uma arte de probabilidades e não há como fugir disso.
Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.
Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.
Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.
O médico que só trabalha com esses valores está despreparado para exercer raciocínio clínico.
Vamos a uma enquete em que isso se provará verdade:
1. Sabendo que a especificidade do ECG para diagnosticar oclusões coronárias agudas é 97%, qual a probabilidade de uma pessoa aleatória ter supra de ST e não ter infarto?
A resposta correta a essa pergunta é “impossível saber” por conta de um simples fato:
- Sensibilidade e especificidade partem de um dado que o clínico, na maioria das vezes, não sabe:
- Para o clínico, sensibilidade e especificidade (essas duas informações apenas, e nada mais):
Ainda para a minha bolha:
- A maioria dos médicos:
E por último:
- O ensino médico, em geral, deixa claro o problema nessa questão e ensina método bayesiano probabilístico de interpretação de exames, dando ao aluno condições de perceber que está aprendendo algo insuficiente.
Imagine que você é convidado a participar como voluntário em um estudo científico sobre uma nova droga e, por alguma razão (em geral, fama ou dinheiro) os pesquisadores têm interesse em fazer esse remédio “dar certo”.
Um fio sobre o viés de alocação e sobre pensamento crítico.
Se fala aos quatro ventos que o padrão ouro da ciência é o estudo duplo-cego, randomizado, placebo-controlado.
O que não se fala é que não basta esse estudo existir que automaticamente deve ser aceito pela comunidade médica.
Ele precisa passar por avaliações metodológicas
Ser duplo-cego e randomizado significa que nem a equipe médica nem os pacientes sabem a que braço do estudo o paciente será alocado. Isso é feito para evitar subjetividades no processo, como a que eu citei no primeiro tweet.
Agora eu pergunto: você acredita em tudo que falam?
Uma das frases mais distorcidas por médicos leigos e charlatões é a máxima “a clínica é soberana”.
Essa frase deve guiar as atitudes de todos os médicos diariamente. E não é compreendida por muitos.
O que significa, então? Segue o fio.
1. Que a clínica é superior à cirurgia.
Não, cara pálida. (Para quem não é médico: existe uma implicância boba entre as duas especialidades).
Cirurgiões, obstetras, veterinários… todo mundo que lida com diagnósticos e tratamentos deve ser subordinado à clínica.
2. Que a clínica é superior à Medicina Baseada em Evidências.
Frases do tipo “quem sabe mais é quem tratou 300 pacientes ou quem tá sentado numa mesa avaliando estudos?” levam a crer que a ~atividade clínica~ é superior às evidências.
Também não é assim.