A experiência em Thompson
.
Aproveitando a data, pensei em falar um pouquinho sobre um dos conceitos mais importantes da obra de E.P. Thompson e como ele revigora a tradição marxista.
Lembram da frase do Manifesto? Toda história até hoje é a história da luta de classes? Pois é, todo marxista começa por aí.

Mas luta de classes, em Marx, é um termo abrangente. Claro, as classes lutam - e no capitalismo, somos cada vez mais reduzido a duas posições:
Burgueses ou proletários.

Como muito do movimento do pensamento marxiano foi desvendar a formação e transformação do capital na sociedade, a luta de classes virou uma espécie de axioma.
Tipo, é óbvio que tem luta de classes e é óbvio que é burgeses x proletários, mas como é que funciona? É tipo uma pelada, galera se encontra num campinho, com camisa x sem camisa?
(isso remete a uma questão mais densa do marxismo, eu sei...)

Aí, quando uma editora convidou o Thompson, professor de jovens e adultos e militante comunista (em vias de sair do PCGB) para escrever uma história da classe operária inglesa, ele pensou:
"Mano, mas como essa classe entrou em luta? Primeiro tiveram que esperar o capitalismo ficar desenvolvido pra depois lutar? Tiveram que esperar a vanguarda dizer que agora era hora de luta? Como milhões entenderam que não eram da mesma classe que outros?"
De fato, todo mundo esperava que uma história da classe operária na Inglaterra tivesse relacionada ao movimento cartista, de 1832. Thompson volta mais pra trás e remete a 1790, que é quando pela primeira vez, os trabalhadores ingleses começam a expressar uma...
...linguagem própria para se definir como classe.

Mas essa linguagem não era na forma de movimento social ou sindicato (consideradas suas formas mais bem acabadas). Ela era cruzada por várias outras tradições, inclusive religiosas.
Ou seja, dialogava com o que eles viviam.

Em outras palavras, a classe não nasceu pronta, ela foi se tornando agente do seu próprio "fazer". Não veio intelectual, partido, ou movimento que disse: ó, agora você é classe operária.
Foi o contrário, foram os sujeitos que criaram essa linguagem de classe que criaram suas formas de expressão e consciência específicas (como sindicato, partido, movimento etc).

E isso tudo remete a um termo: EXPERIÊNCIA!
O constitutivo da classe trabalhadora não foram as relações de produção ou as forças produtivas no abstrato, mas sim como os sujeitos entendiam isso a partir do que viviam.

Entendiam não porque um teórico tirou da cartola a teoria que ia salvá-los...
...mas porque eles viviam e sentiam o capitalismo em sua origem. E porque percebiam que sua linguagem, seus costumes, seus hábitos, não eram suficientes para dar explicação para aquele novo tipo de exploração que vivenciavam.
Exploração inclusive é a chave. Porque durante muito tempo rolou uma disputa entre historiadores e economistas pra saber se a Revolução Industrial tinha sido "boa".
Historiadores diziam que era ruim, pois olhavam para acidentes de trabalho e outras estatísticas. Economistas diziam que era boa porque olhavam estatísticas sobre expectativa de vida.
Nesse quiproquó, Thompson olha para como os trabalhadores enxergaram suas próprias experiências na época e, mais do que positivo ou negativo, eles ressignificaram todo o seu mundo.
A gente pode dizer que a linguagem não era adequada, que era arcaica, cheia de influência religiosa ou messiânica, que não era revolucionária. Massssss...eles viveram essa época e nós não.
Porque eles tinham que interpretar aquele novo mundo, que jogava milhões de pessoas nas mãos de uma entidade impessoal (o "mercado") e que obrigou todo mundo, homens, mulheres, velhos e crianças a venderem seu tempo e seu trabalho para simplesmente ter o mínimo para sobreviver.
É, portanto, na experiência vivida que as relações produtivas se concretizam, tanto quanto é na experiência vivida que o amor se concretiza. E como não tem classe sem sujeitos, não tem amor sem amantes.
A luta de classes, dessa forma, não é um chamado de batalha, em que os exércitos se perfilam um de frente para o outro, mas sim, luta constante, ora aberta, ora velada, onde os sujeitos realizam a grande síntese marxiana.
Interpretam o mundo e agem sobre ele em unidade indissolúvel. Concreto pensado em seu movimento histórico e dialético. Pode não ter formato revolucionário, vanguardista, mas é a consciência de classe na sua forma mais absoluta, como produto da própria classe - ...
...que ao longo do tempo, vai se tornar também heterogênea e inclusive revolucionária.

Tudo, no final das contas, gira em torno da experiência. E isso é um vínculo direto com Marx. O concreto só pode ser concreto porque se sente como tal.
O açúcar só tem gosto doce porque assim eu provo. A explicação química da doçura do açúcar não precede a experiência do doce, tanto quanto a do fogo não precede a queimadura.
O impacto que isso tem na história é imenso (esse livro de Thompson, até um tempo atrás, era a obra mais citada na historiografia brasileira). Mas é seu impacto político que acho mais potente.
Significa que qualquer projeto político invariavelmente precisa estabelecer uma relação dialógica com o que as pessoas vivem, sentem, experimentam. Sem isso, é só abstração, só metafísica e pouco materialismo.
A teoria revolucionária é importante, claro. Mas sem ser dialógica, ela é só abstração, ininteligível na maioria das vezes. É essa ponte entre o vivido e o pensado que as novas linguagens, hábitos e culturas de classe se desenvolvem.
A aposta cega em uma vanguarda, seja na retidão de sua linha política, seja na sua moralidade, é sempre um voto de desconfiança sobre a experiência das classes populares. E é aí, e não na teoria, que reside o centro nevrálgico da consciência de classe como fenômeno histórico.
E é isso. Leiam Thompson e tomem umazinha em homenagem ao E.P. que ele merece.

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Fernando L'Ouverture

Fernando L'Ouverture Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @louverture1984

27 Aug
Amigos relatando que o Novo Ensino Médio vem sendo implementado e com ele os cortes de carga horária e demissões - em especial nas humanidades.

Quando penso que essa discussão começou lá nos anos Dilma e que já naquela época pessoal falava que ia dar merda, só consigo ter raiva.
"Ah, mas a culpa não foi do governo".

De fato. Quem executou a reforma foi o Temer e o Mendoncinha (aquele meliante com diploma de advogado), que deram todo o seu tempero pessoal para a coisa. A BNCC que o diga.
E mais: essa reforma foi tocada às pressas por um governo ilegítimo, golpista, sem debate com a sociedade civil.

Aí deixaram para o governo Bolsonaro e os governos estaduais executarem.

Só que foi o PNE 2014 que apontou a necessidade da reforma.
Read 6 tweets
26 Aug
Não sou especialista no tema, mas acho curioso certos léxicos chineses que são análogos à socialismo. "Prosperidade comum" parece muito com o "Bem viver", dos 3 princípios de Sun Yat-Sen.
O termo "Gòngtóng fùyù", contudo, parece ter sido criação do PCCh, mas sem muita substância, podendo ter vários sentidos em diferentes contextos.

Fico pensando se a aposta ainda não é justamente essa polissemia.
"Prosperidade comum" pode apontar para nacionalismo, ou mudanças tributárias e fiscais, ou até mesmo para uma ideia de socialismo.

Assim, uma pesquisa que informe a quantidade do uso da palavra explica algumas coisas, mas sem contexto, ela pode ser bastante vazia.
Read 4 tweets
20 Jun
Nos últimos dias tenho conversado com o pessoal que se afirma como marxista libertário sobre a China. Eles insistem que a China é capitalista e acho que, para eles, considero que a China é socialista. Ou que não é capitalista. Mas o buraco é mais embaixo e por isso fiz esse fio.
Eu compreendo as posições teóricas que chamam a China de capitalismo de Estado, ou Estado operário degenerado, ou qualquer outra nomenclatura que tenha nascido no movimento trotskista. Sou um trotskista desgarrado, então conheço um pouco desse paranauê.
Mas tenho alguns incômodos com essa discussão.

O primeiro deles é que modo de produção não se reduz a um país. Para quem é anti-stalinista, não creio que há divergência, mas é bom ressaltar. Não existe socialismo num só país. Não existe capitalismo num só país.
Read 28 tweets
19 Jun
Não vi o vídeo do canal Meteoro, gente. Lamento...

Fiz uma thread sobre isso em dezembro de 2019 (PRÉ-PANDEMIA e PRÉ-BABY!) que comento alguns problemas. Não parece que mudou muito. Fiz algumas leituras novas, mas não acho que há fatos novos.

Ainda assim, acho uma história delicadíssima. Recentemente me indicaram esse texto - que eu não conhecia - e alguns pontos de inflexão me sensibilizaram, em especial a ironia do fato de que o Ocidente acusa a China de islamofobia agora...

chuangcn.org/journal/two/sp…
(o que por sua vez, não ignora o fato de que a China é uma aliada do Ocidente na guerra ao terror, mas essa é outra história)

De toda a forma, há muita incompreensão no caso dos uighures, pois o próprio campo da identidade étnica na China é bastante diferente do Ocidente.
Read 5 tweets
17 Jun
Sabem o que é realmente impressionante? A imprensa passou anos construindo a glamourização da carestia - "batata doce, o vilão da Festa Junina".

Mas aí vem o Guedes, com toda sua falta de fato e fala: foda-se, vamos dar comida estragada.
Mas o pensamento de um Guedes não cai do céu. Essa mistura de "burrice com toques de psicopatia" tá enraizada em muitos lugares. Tentei mapear alguns dos mais importantes aqui.
1) A imprensa. Sim. Desde 2016, com o impeachment de Dilma, a forma pela qual os jornais noticiam a carestia (aumento de preços e falta de produtos) é sempre glamourizando a situação. Vocês já viram isso aqui, né?

Read 16 tweets
15 Jun
Em tempo: comer inseto é algo bastante normal, em culturas ameríndias, africanas, asiáticas e até europeias. Orientalismo aí é mato.

Só que com a Revolução Industrial e alimentação virou um troço massificado globalmente inclusive nos hábitos alimentares.
A massificação do consumo retomou um padrão de alimentação tipicamente europeu ocidental, focado em especial nas elites cortesãs - ou seja, opulência = consumo de carne.

Esse processo é tão intenso que a própria China tá vivenciando esse boom do consumo de carne.
Read 5 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!

:(