Nove desconhecidos e uma dúzia de bobagens sobre psicodélicos.

Conforme prometido, aí vai o #cordel sobre a série 'Nine Perfect Strangers', da Hulu, que teve o último episódio recentemente exibido na Prime Video.

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS.
Só prossiga se tiver assistido.
Eu estudo o uso terapêutico de psicodélicos, um tema central dentro da série.

Nela, nove pessoas - na maioria, ricaços - vão a um retiro no spa de uma russa meio zureta (Nicole Kidman).

Como podem imaginar, fui solicitado a me manifestar sobre a trama e o que há de veracidade.
Antes de começar, uma nota importante: EU ACHEI A SÉRIE MUITO RUIM, independente da questão dos psicodélicos - mas também por causa deles. Apesar de algumas atuações muito boas, como as de Melissa McCarthy, o roteiro é muito inverossímil e raso. Dito isso, vamos lá.
1. "Dosing" é antiético e inadequado. Em inglês, "dosar" uma pessoa significa dar uma droga para ela sem que ela saiba. A menos que faça parte de um protocolo onde a pessoa receberá um psicodélico ou placebo (e será informada disso), pode promover respostas IMPREVISÍVEIS E RUINS.
2. Indicações inadequadas. Em determinado momento, no "banquete do bode", Masha diz que psicodélicos tratam esquizofrenia e transtorno bipolar. Neste momento do conhecimento, tudo o que sabemos nos leva justamente a CONTRAINDICAR psicodélicos para estes transtornos mentais.
3. Evidências disparatadas. O tempo todo Yao e Masha falam que uma ou outra coisa tem evidência científica disso ou daquilo. É até possível que haja uma parte pesquisada no que é dito, mas é tão fora de contexto eu rogo a você que não embarque na canoa furada de acreditar nelas.
4. Não adianta dar psicodélicos em dias seguidos. Os psicodélicos aplicados no cotidiano, LSD e psilocibina, tem altíssima tolerância, ou seja, para causar os mesmos efeitos, precisaria que as doses subissem consideravelmente a cada dia, o que (ao menos no começo) não acontece.
5. Não há integração. Um dos mais importantes elementos da psicoterapia psicodélica atualmente é a integração. Trata-se de um momento dedicado para a refletir sobre o que foi sentido e percebido durante o uso agudo e como isso afeta sua vida. Em Tranquillum, zero integração.
6. Alucinações visuais. Psicodélicos, apesar de seu outro nome, alucinógenos, causam mais distorções visuais que alucinações. As drogas aplicadas não seriam capazes de causar as alucinações vistas/sentidas, por exemplo, pelos Marconi ou Jessica, especialmente fora do efeito.
7. As alucinações liliputianas. Em determinado momento, Frances vê uma versão minúscula do cara que a enganou e roubou seu dinheiro. Esse tipo de alucinação existe, mas não está ligada ao uso de psicodélicos e sim, principalmente, a alterações mentais agudas de causa orgânica.
8. O transtorno mental de Carmel. É absolutamente irresponsável oferecer psicodélicos neste contexto para alguém tão desequilibrado como esta personagem - e Masha sabia disso. Além disso, ela fazia uso de uma série de medicamentos, e há risco de interação com eles.
9. Alucinação compartilhada. Embora se relatem alterações visuais compartilhadas sob psicodélicos - algo peculiar e que necessita estudos - nada, absolutamente NADA se compara à baboseira que acontece com os Marconis e Masha. Psicodélicos não trazem de volta seus entes queridos.
10. DMT oral. No coquetel final de Masha com os Marconi, eles tomam psilocibina, LSD e DMT. Além de ser desnecessário combinar psicodélicos que agem sobre o mesmo receptor, a série ignora o fato de que a DMT, se ingerida por boca, é inativada pelo corpo e não causa efeito algum.
11. Sangramento nasal. Com o coquetel psicodélico de Masha, Napoleon tem um sangramento nasal. As substâncias ativas (LSD, psilocibina) ou inativadas (DMT, vide acima) no coquetel administrado não são capazes de causar, até onde se sabe, este efeito.
12. Pupilas não dilatadas. Aqui já é preciosismo meu, mas quem usa psicodélicos serotoninérgicos fica com as pupilas BEM dilatadas. Isso não acontece com ninguém e no caso de Masha e seus olhos azuis-claros, isso chega a ser gritante. Há colírios que resolveriam isso facilmente.
Há outros erros sobre psicodélicos ou não (por exemplo, suicídio), mas vou parar aqui. Em resumo, a série faz um imenso desserviço para o estudo e uso sérios de psicodélicos, dando a ideia de que um uso totalmente descontrolado e antiético vai tornar todo mundo feliz. Tá errado.
"Ah, mas eu usei LSD em um contexto não controlado, na doideira, e tive revelações que mudaram minha vida".

OK, isso pode de fato acontecer. Mas se quisermos maximizar benefícios e reduzir danos, a melhor maneira é cuidar adequadamente de quem será submetido à experiência.
Neste artigo em seu blog Virada Psicodélica, o @MarceloNLeite faz um apanhado dos erros e do que se salva. Eu deixo a parte benevolente sobre essa série sofrível para vocês lerem no texto dele. Não sou tão bonzinho, hehe.
viradapsicodelica.blogfolha.uol.com.br/2021/09/26/set…
Enfim, nem todo mundo irá se beneficiar de psicodélicos: eles não são panaceia, e existem riscos associados. Lembrem-se ainda que, com exceção da cetamina, não há uso regulamentado terapêutico de psicodélicos no Brasil. Não caiam no conto dos falsos xamãs. Amem-se. Cuidem-se.
O texto da imagem cometeu uma bobagem: na pressa, ficou grafado “bogagem”. Foi a pressa, desculpem. Esse foi o meu “Norvana”.

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Antes de tudo, vá lá e assista ao episódio. Só faz sentido você ler o que eu vou dizer aqui se já tiver assistido ao vídeo, que tem pouco mais de 25 minutos e se chama "PARE DE SOFRER" (sim, é isso mesmo, o bordão da Universal, e isso não é por acaso).
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