Achei importante aqui trazer uma contextualização. Pessoal rapidamente descobriu que a filmagem ocorreu no Annam, na Indochina francesa. Uma das senhoras é inclusive Blanche Doumer, a esposa do governador-geral da Indochina, Paul Doumer.
O que parece um ato de filantropia carregado de colonialismo ganha outra dimensão quando descobrimos quem são os Doumer. Governador-geral, Paul recebe uma tarefa: tornar a Indochina uma colônia lucrativa.
Isso porque, a colonização francesa na Ásia não ia lá muito bem. Conchinchina, Annam e Tonkim, os principais espaços colonizados pelos franceses, foram alvo de intensa resistência local. O reino do Dai Viet não conseguiu resistir, mas nobres e mandarins locais, sim.
Uma dessas revoltas, a de Can Vuong (1885-1895) teve diversos líderes. Uma tradição se firmou: intelectuais do antigo mandarinato da monarquia do Dai Viet organizando a luta dos camponeses com bases em preceitos confucionistas e tradicionais, mas usando novas táticas de guerra.
As revoltas tinham um forte componente anti-ocidental e anti-cristão (no caso da colonização francesa, a Igreja católica foi ponta de lança no colonialismo da França desde o início do século XIX). E, claro, foram duramente reprimidas - com direito a inúmeros casos de estupros.
"Pacificada" a Indochina, a França decidiu que era hora de tornar a região lucrativa. O parlamento estava gastando demais para tornar a colônia produtiva e, para isso, Paul Doumer foi chamado para resolver o pepino.
A região, que hoje engloba Vietnã, Camboja e Laos era eminentemente agrária e camponesa. A produção de arroz garantia não só grãos como também a produção de bebidas. E aí Doumer, um matemático gabaritado, viu vantagem: era preciso quebrar a subsistência local.
Doumer estabeleceu uma base de tributação de 100% em produtos monopolizados pelos franceses - entre eles, três se destacam: o vinho, o sal e o ópio.
O vinho, por óbvio, pela produção francesa - mas englobando também o vinho de arroz agora, cuja produção era doméstica.
O sal carrega a perspectiva semelhante a do antigo modelo colonialista das metrópoles. Desde o século XVII, as metrópoles tinham abandonado essa taxação, mas não as colônias. Era uma fonte estável de renda para o Estado colonial.
Mas e ópio? Bem, apesar dos britânicos terem inundado os mercados chineses com ópio produzido na China, a França não era produtora até a colonização da Indochina. Tão logo os franceses tiverem acesso aos campos de papoula, precisavam agora de distribuição...e consumo.
Aí vem novamente o empreendedorismo de Paul Doumer: ele modernizou a única refinaria de ópio no Vietnã, tornando-a uma máquina de produção e distribuição local. Isso tornou o ópio mais barato e mais acessível para uma população cada vez mais empobrecida.
Foi nesse contexto que a taxação do ópio surgiu. 1/3 de todo o lucro do governo colonial da Indochina, entre 1882 e 1910, veio do comércio de ópio e opióides. A sobretaxação de um produto com altíssimo potencial compulsivo foi uma estratégia comercial poderosa.
Da sobretaxação, o resultado mais inglório é que muitos camponeses, que consumiam vinho de arroz, sal, ou ópio, não tinham dinheiro suficiente para pagar os tributos. O governo Doumer, por sua vez, não hesitou em confiscar terras e propriedades de súditos endividados.
Esse confisco gerou ainda mais renda para o governo colonial, que revendia as terras adquiridas para grandes empresas francesas - em especial a de um novo e lucrativo segmento: o da borracha. As "plantations" de borracha em poucos anos tomaram a paisagem da região.
O trabalho nas plantações também foi racionalizado por Doumer, que criou mecanismos legais para que as empresas contratassem presos para o trabalho - muitos camponeses que não pagavam seus tributos eram presos e se tornavam a mão-de-obra da nascente indústria automobilística.
Doumer saiu do seu posto oficialmente em 1902, mas o sucesso foi tanto que isso o gabaritou a cargos mais altos no Estado, inclusive sendo eleito presidente francês em 1931.
Blanche, a sua esposa, ainda foi homenageada com uma mansão em seu nome na região de Vung Tau.
Blanche é a senhora que joga os sapeques, as pequenas moedas para as crianças no vídeo. Trata-se de uma tradição religiosa do catolicismo, jogar moedas para os recém-batizados.
Por que as crianças estavam sendo batizadas num pagoda vietnamita não fica claro, mas é bom ressaltar que em tempos de miséria absoluta, uma das chances de sobrevivência aos vietnamitas era a conversão ao catolicismo e a perda da sua identidade cultural.
Lembram do Can Vuong, o movimento de 1885 e 1895 que falei acima? Pois é, eles eram abertamente anti-católicos. Logo, o local que se convertesse a fé cristã renunciava também a sua cultura local (inclusive o termo "Viet" passou a ser proibido pelos colonizadores franceses).
O ato colonialista talvez seja mais sutil (no vídeo parece até que estão dando comida aos pombos), mas não obstante ele existe. Existe porque há um contexto específico de uma série de violências, nas quais os personagens principais são inclusive agentes do colonialismo.
Os Doumer, infelizmente, nunca pagaram em vida pelos crimes cometidos na Indochina. Doumer foi assassinado em 1932 por um imigrante russo anticomunista que viu no presidente francês um "moderado". Blanche morreu no ano seguinte, de acidente de automóvel.
O Vietnã só veio a expulsar oficialmente os franceses em 1955, mas levaria ainda mais 20 anos para ter sua independência reconhecida, após anos de guerra civil e intervenção dos Estados Unidos. Um dos pais da independência vietnamita foi Ho Chi Mihn.
Supostamente nascido em 1890, ele morou na região de Annam em 1900. Seu pai era um ex-mandarim da corte. Ele tinha dez anos quando foi feita a filmagem de madame Blanche e sua generosa filantropia. Como muitas daquelas crianças no templo.
As voltas que a terra dá.
PS: A principal referência aqui é o livro de Pierre Brocheux e Daniel Hémery, "Indochina: la colonisation ambigue". Infelizmente muito caro e bem difícil de encontrar. Mas do que já li, uma das melhores obras sobre colonização francesa na região.
PS2: Agradecimentos a quem deu as informações no fio original também sobre a origem do vídeo e ao @ALuizCosta que fez a associação da época com a idade do "Bac Ho".
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Esse papo de "banalizar a linguagem" é muito doido, porque uns anos atrás se acusava a esquerda de banalizar o termo "neoliberal".
Eu, particularmente, não acho que banaliza. A galera luta por significados e se os termos se tornam moeda corrente e fazem sentido, qual o problema?
Eu sou historiador, acho fundamental a discussão sobre conceitos, eles precisam ser sempre contextualizados e significados. Mas assim: eles não são mortos. Se a galera ressignifica o Aécio como fascista, o erro é menos no conceito e mais no contexto...
Algumas pessoas sabem, mas meu alter-ego vem orientando uma pesquisa sobre saques na região Nordeste entre 1979 e 1994. Orientei três alunos nesse projeto que se encerrou semana passada e olha, gostei muito do trabalho deles.
A gente partiu de um problema político e histórico: os anos 1980 são marcados por um contexto de hiperinflação que ocasionou saques em supermercados no Sul-Sudeste do Brasil. Tem teses e dissertações sobre o tema. O básico: carestia e decadência da ditadura.
No Sul-Sudeste, a explicação era sempre de ordem econômica: a inflação alta, a perda do poder de compra, quando vê, bum! Revolta popular e saque em supermercado.
Contudo, no Nordeste, não teve incidência de saques? E se teve, a hiperinflação era a causa?
Ontem eu finalmente terminei de ouvir a entrevista do Mano Brown e do Lula.
Gostei e tal, me emocionei em algumas partes. Mas o que mais me pegou foi a rememoração do Brown sobre o comício em 2018.
Pra mim, é esse o evento que estrutura a entrevista. As perguntas sobre raça, sobre o que parte da periferia enxerga na direita, sobre alternância de poder, sobre a percepção popular de uma decadência do PT na expressão da revolta...tudo remete ao comício de 2018.
Bom, o próprio Brown fala isso na entrevista e rememora aquele dia, um dia que Lula não estava lá - pois estava preso por conta de um processo que, hoje sabemos, foi flagrantemente ilegal.
É doido que aquele esporro que Brown deu seja ainda o norteador.
A experiência em Thompson
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Aproveitando a data, pensei em falar um pouquinho sobre um dos conceitos mais importantes da obra de E.P. Thompson e como ele revigora a tradição marxista.
Lembram da frase do Manifesto? Toda história até hoje é a história da luta de classes? Pois é, todo marxista começa por aí.
Mas luta de classes, em Marx, é um termo abrangente. Claro, as classes lutam - e no capitalismo, somos cada vez mais reduzido a duas posições:
Burgueses ou proletários.
Como muito do movimento do pensamento marxiano foi desvendar a formação e transformação do capital na sociedade, a luta de classes virou uma espécie de axioma.
Amigos relatando que o Novo Ensino Médio vem sendo implementado e com ele os cortes de carga horária e demissões - em especial nas humanidades.
Quando penso que essa discussão começou lá nos anos Dilma e que já naquela época pessoal falava que ia dar merda, só consigo ter raiva.
"Ah, mas a culpa não foi do governo".
De fato. Quem executou a reforma foi o Temer e o Mendoncinha (aquele meliante com diploma de advogado), que deram todo o seu tempero pessoal para a coisa. A BNCC que o diga.
E mais: essa reforma foi tocada às pressas por um governo ilegítimo, golpista, sem debate com a sociedade civil.
Aí deixaram para o governo Bolsonaro e os governos estaduais executarem.
Só que foi o PNE 2014 que apontou a necessidade da reforma.
Não sou especialista no tema, mas acho curioso certos léxicos chineses que são análogos à socialismo. "Prosperidade comum" parece muito com o "Bem viver", dos 3 princípios de Sun Yat-Sen.