Algumas pessoas sabem, mas meu alter-ego vem orientando uma pesquisa sobre saques na região Nordeste entre 1979 e 1994. Orientei três alunos nesse projeto que se encerrou semana passada e olha, gostei muito do trabalho deles.
A gente partiu de um problema político e histórico: os anos 1980 são marcados por um contexto de hiperinflação que ocasionou saques em supermercados no Sul-Sudeste do Brasil. Tem teses e dissertações sobre o tema. O básico: carestia e decadência da ditadura.
No Sul-Sudeste, a explicação era sempre de ordem econômica: a inflação alta, a perda do poder de compra, quando vê, bum! Revolta popular e saque em supermercado.
Contudo, no Nordeste, não teve incidência de saques? E se teve, a hiperinflação era a causa?
Bom, pessoal foi fazer prospecção na imprensa e não só encontraram mais de 200 ocorrências de saques no período - chegaram a produzir um mapa com todas as localidades onde ocorreram saques - mas também fotos, depoimentos e as opiniões da própria imprensa.
O quadro é bastante complexo, mas resumindo toscamente, os saques no Nordeste eram vistos como consequência exclusiva da seca. Determinismo geográfico mesmo. Algumas palavras-chave ganharam destaque, como "flagelados" (chegamos a pensar na possibilidade do termo ser racializado).
O problema é que conforme as análises mudaram do quantitativo para o qualitativo, essa narrativa da imprensa foi sendo contestada. Primeiro, que a demanda principal era por trabalho - o que dialoga com a questão da SUDENE, das Frentes de Trabalho e do antigo DNOCS na região.
Segundo, que as mulheres tinham papel bastante ativo nos saques - que muito raramente eram violentos.
Terceiro, que a polícia da ditadura não tinha condições de reprimir esses atos, desde que eles seguissem um repertório cauteloso de anonimato e multidão.
Quarto, que por vezes vereadores e políticos tentavam mediar a crise, mas os saques tinham seus próprios líderes, costurados a partir dos próprios eventos e da própria comunidade. O mais interessante, contudo, é que pela imprensa era muito difícil encontrar esses sujeitos.
(mas eles estão lá, afinal, alguém organizava diversas cidades para juntar um mutirão no sertão de Pernambuco para saquear uma cidade...esse trabalho organizacional quebra de vez a vitimização e animalização dos jornais)
Enfim, esses são alguns dos principais apanhados da pesquisa que, espero eu, renda alguns textos em breve.
O projeto sobre os saques na região vai recuar um cadinho mais no tempo agora e vai agora mergulhar no contexto da ditadura, 1964 a 1979.
A hipótese inclusive é de que talvez o saque na região Nordeste seja uma performance de luta social muito mais enraizada que no Sul-Sudeste, tão forte que, creio eu, nem a ditadura conseguiu sufocar.
Agora é ver se os novos pesquisadores vão confirmar essa hipótese, ou derrubar.
PS: Não tive tempo para pegar os prints da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, então algumas imagens aí são do Memorial da Democracia e as outras foram tiradas pelos pesquisadores no NUT-SECA, da UFRN.
Esperamos consultar mais acervos físicos no futuro. :)
PS2: Para os pesquisadores não me cobrarem depois, mas eles acharam mais de 200 ocorrências, mas saíram convencidos de que tem muito mais e que os jornais não noticiavam - embora às vezes só a ameaça do saque já era suficiente pra ganhar uma manchete.
PS3: Foda-se, vou marcar eles, sim. A pesquisa é da galera, é justo que eles mereçam o crédito. :)
@__naIaura e o @hist_ric têm Twitter. O Thiago, que também participou da pesquisa, acho que não tem. Se tem, não me contou. 👀
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Esse papo de "banalizar a linguagem" é muito doido, porque uns anos atrás se acusava a esquerda de banalizar o termo "neoliberal".
Eu, particularmente, não acho que banaliza. A galera luta por significados e se os termos se tornam moeda corrente e fazem sentido, qual o problema?
Eu sou historiador, acho fundamental a discussão sobre conceitos, eles precisam ser sempre contextualizados e significados. Mas assim: eles não são mortos. Se a galera ressignifica o Aécio como fascista, o erro é menos no conceito e mais no contexto...
Ontem eu finalmente terminei de ouvir a entrevista do Mano Brown e do Lula.
Gostei e tal, me emocionei em algumas partes. Mas o que mais me pegou foi a rememoração do Brown sobre o comício em 2018.
Pra mim, é esse o evento que estrutura a entrevista. As perguntas sobre raça, sobre o que parte da periferia enxerga na direita, sobre alternância de poder, sobre a percepção popular de uma decadência do PT na expressão da revolta...tudo remete ao comício de 2018.
Bom, o próprio Brown fala isso na entrevista e rememora aquele dia, um dia que Lula não estava lá - pois estava preso por conta de um processo que, hoje sabemos, foi flagrantemente ilegal.
É doido que aquele esporro que Brown deu seja ainda o norteador.
A experiência em Thompson
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Aproveitando a data, pensei em falar um pouquinho sobre um dos conceitos mais importantes da obra de E.P. Thompson e como ele revigora a tradição marxista.
Lembram da frase do Manifesto? Toda história até hoje é a história da luta de classes? Pois é, todo marxista começa por aí.
Mas luta de classes, em Marx, é um termo abrangente. Claro, as classes lutam - e no capitalismo, somos cada vez mais reduzido a duas posições:
Burgueses ou proletários.
Como muito do movimento do pensamento marxiano foi desvendar a formação e transformação do capital na sociedade, a luta de classes virou uma espécie de axioma.
Amigos relatando que o Novo Ensino Médio vem sendo implementado e com ele os cortes de carga horária e demissões - em especial nas humanidades.
Quando penso que essa discussão começou lá nos anos Dilma e que já naquela época pessoal falava que ia dar merda, só consigo ter raiva.
"Ah, mas a culpa não foi do governo".
De fato. Quem executou a reforma foi o Temer e o Mendoncinha (aquele meliante com diploma de advogado), que deram todo o seu tempero pessoal para a coisa. A BNCC que o diga.
E mais: essa reforma foi tocada às pressas por um governo ilegítimo, golpista, sem debate com a sociedade civil.
Aí deixaram para o governo Bolsonaro e os governos estaduais executarem.
Só que foi o PNE 2014 que apontou a necessidade da reforma.
Não sou especialista no tema, mas acho curioso certos léxicos chineses que são análogos à socialismo. "Prosperidade comum" parece muito com o "Bem viver", dos 3 princípios de Sun Yat-Sen.
Nos últimos dias tenho conversado com o pessoal que se afirma como marxista libertário sobre a China. Eles insistem que a China é capitalista e acho que, para eles, considero que a China é socialista. Ou que não é capitalista. Mas o buraco é mais embaixo e por isso fiz esse fio.
Eu compreendo as posições teóricas que chamam a China de capitalismo de Estado, ou Estado operário degenerado, ou qualquer outra nomenclatura que tenha nascido no movimento trotskista. Sou um trotskista desgarrado, então conheço um pouco desse paranauê.
Mas tenho alguns incômodos com essa discussão.
O primeiro deles é que modo de produção não se reduz a um país. Para quem é anti-stalinista, não creio que há divergência, mas é bom ressaltar. Não existe socialismo num só país. Não existe capitalismo num só país.