Sabe aquele sentimento de ter uma (boa dúvida) sobre o que fazer com aquele dinheirinho que sobra no final do mês? Você ainda se lembra como era chegar ao final do mês com 300 pilas sobrando?
Segue o fio para entender o "nervosismo do mercado" com o "furo do teto".
Primeiro, a gente tem que diferenciar "dinheiro" de "capital". A imensa maioria das pessoas confunde isso. Dinheiro é o que você tem (tinha) no bolso ou no banco. Serve tão somente para consumir e saldar dívidas.
Capital é um ente econômico abstrato que, quando combinado com trabalho, se reproduz.
Capital pode vir em diversas formas como maquinário, energia e etc. Ele se transforma durante os ciclos econômicos, mas conserva sua essência de reprodução.
Dinheiro NÃO se reproduz.
Agora, imagina aquela sensação. Sobrou 1000 reais no final do mês. O que fazer? Os "coachs" mandam poupar ou investir. Em ambos os casos você está abrindo mão de consumir e entregando para uma instituição financeira o seu dinheiro para que ELA Transforme o seu dinheiro em capital
Por esse "benevolente" seu papel o banco te cobra taxas e te oferece uma taxa de retorno do teu investimento de, digamos 1% ao mês. Colocando sobre o seu dinheiro, por não consumir o banco te paga impressionantes 10 reais a mais cada mês. Descontadas as taxas e impostos.
A parte do negócio que você não vê é que o banco pega o seu dinheiro e junta com o de milhares de pessoas e arruma um jeito de ligar com trabalho transformando ele em capital. Dentro ou fora do Brasil. Nesse processo ele precisa de empresas a quem emprestar o seu dinheiro.
É claro que o banco não pode escolher qualquer um. Ele precisa emprestar seu dinheiro para uma atividade que renda ao banco mais do que ele está pagando a você. A diferença entre o quanto o banco ganha por emprestar o seu dinheiro e o quanto ele te paga é chamado spread bancário.
O spread bancário do Brasil é o SEGUNDO mais alto do mundo e cerca de sete vezes Maior do que a média mundial. Em 2018, estava algo em torno de 20%.
Ocorre que achar atividades produtivas sólidas e seguras para juntar o capital com trabalho não é tarefa simples.
Encontrar atividades produtivas que remuneram o capital pela exploração da mão de obra alheia é particularmente mais difícil quanto maior for o montante disponível a ser investido.
Trocando em miúdos, se você tem 100 reais sobrando, seria fácil encontrar meios de emprestar isso para diversos pequenos e microempresarios. Se você tiver 100 bilhões de dólares disponíveis, não será. Especialmente num cenário de recessão econômica e desemprego como hoje no país
Isso é a chamada lei dos retornos decrescentes do capital. Supostamente, quanto maior o montante de capital a ser investido (oferta) menor o valor pago pelos tomadores de empréstimo (demanda). Assim, supunha Marx, o mercado entraria em equilíbrio em momentos de excesso de capital
O capital demandaria sempre uma economia em expansão para poder ter a chance de seguir se reproduzindo e os capitalistas defenderam governos que fizessem o crescimento econômico para poderem seguir ganhando com o seu excesso de capital. Assim sugeria a lógica de todo o sistema.
Se você tivesse seus 1000 e não ninguém lhe quisesse pagar juros, certamente você consumiria esse valor. Feliz e contente. Uma televisão, um kilo de picanha ou coisas do tipo. Sem problema, sem nervosismo, sem complicação.
Ocorre que quem tem 100 bilhões parados, tá preocupado.
Agora entramos no ponto. No século XX o excedente de capital se tornou tão grande e tão concentrado que o sistema financeiro se tornou hegemônico. A globalização pega 100 reais da tia Cadinha e junta com outros pequenos depósitos que vão parar numa empresa no interior da África.
Nem a tia Cadinha, nem o banco sabem que a empresa usa trabalho escravo de crianças para produzir cacau e que devasta o meio ambiente de forma predatória e paga propina para políticos manterem tudo escondido... Tudo isso fica escondido no capitalismo.
Ainda assim, existe o problema do risco. O capital é os capitalistas - ao contrário do que dizem os coachs - Odeia risco. Emprestar envolve risco e por isso o capital demanda ações de estado para minorar este risco. Listas de devedores, justiça cível cada vez mais rápida e etc.
Quanto maior for a gama de arbitrariedades disponibilizados pelo Estado ao capital menor o risco dos investimentos não serem pagos. Mas na segunda metade do século XX o capital encontrou a solução perfeita para o problema.
A questão era como aplicar montantes cada vez maiores de capital excedente com riscos cada vez menores?
E a solução foi o Estado.
Isso mesmo. Para burlar a lei dos ganhos decrescentes do capital os capitalistas passaram a emprestar suas grandes somas ao ESTADO!
Dívida pública passou a ser a solução para o capital em que o sistema financeiro não encontra destino ou cujo destino pagaria juros abaixo do esperado. Financiar o Estado e toda a infraestrutura de apoio ao cidadão passou a ser a forma mais segura de desaguar os bilhões dos ricos
Para isso, contudo é preciso criar formas de controle sobre os gastos do Estado para garantir ao capital que ele não vai dar calote. E como isso acontece? Com o financiamento de bancadas de políticos que aprovem "teto de gastos", prioridade de pagamentos no orçamento público etc
É necessário que o capital financie empresas de mídia que convençam a população de que pagar mais de 300% de juros ao ano é "normal". Precisa pagar legisladores para criarem leis que protegem a propriedade mais que a vida. Polícia que mate ladrão de banco e não se importe c pobre
O capital precisa financiar diversas universidades para ensinar o absurdo de que o estado é "como uma casa" em que não se pode gastar mais do que se recebe. É preciso criar "educação financeira" nas escolas para "ensinar" crianças a "poupar" (não gastar).
Todo esse pensamento de "austeridade", "controle", "responsabilidade fiscal" que vem embalado numa suposta mentalidade de "honestidade" serve exatamente para dar segurança aos ultra ricos que eles terão um lugar para desaguar seu capital excedente e a certeza de serem pagos.
Até um ministro da economia jogar tudo isso água abaixo e dizer que vai furar o teto de gastos, vai aumentar a chance de dar calote e vai gastar de forma "populista" o dinheiro em ano eleitoral. Aí "o mercado" fica "nervoso" e "não recebe bem" a notícia. Fim.
Até porque esses bilionários não podem fazer como nós e pegar o excedente deles e tomar cerveja! Difícil consumir bilhões de dólares apenas para si...

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22 Oct
A desculpa agora dos psolistas pela defesa que fizeram da lava a jato na PEC 05 é risível. Segundo eles, como a proposta não criava uma "ampla e popular forma de controle" sobre o MP ela "não resolvia nada e só piorava a coisa, porque permitia intervenção".
Piada ou má fé? (+)
Qualquer aluno de primeiro ano de sociologia ou ciência política sabe que não há caso conhecido de reforma institucional em que o impulso transformador tenha vindo de dentro da instituição. Instituições criam cultura própria, valores e percepções que buscam se auto-proteger.
Pensar em uma forma de "controle efetivo e popular" sobre o MP é fazer a famosa política de DCE em que toda a reunião termina com uma moção contra o "capitalismo financeiro mundial".
Só se vai modificar o autoritarismo e a hermeticidade das instituições brasileiras aos poucos.
Read 13 tweets
19 Oct
Vou tentar me fazer entender melhor.
Robert Paxton, em seu já clássico, Anatomia do fascismo, afirma que "vai estudar os fascistas para entender o fascismo". Isso pode parecer bobo, mas é uma enorme mudança na historiografia sobre o fascismo. (fio)
Até então, se estudava o fascismo para entender os fascistas, claramente em acordo com o estruturalismo vigente no século XX. Isso dava espaço a uma série de interpretações equivocadas do fenômeno. Porque tomava o sujeito como epifenômeno da ideologia.
Surgiram as explicações circunscritas à luta de classe, surgiram as teorias econômicas sobre o rebaixamento do valor da mão de obra e a acumulação do capital ao largo do setor financeiro ... enfim, a ideia era que o fascismo criava os fascistas.
Read 6 tweets
19 Oct
Já escrevi isso em muitos lugares, já falei nos cursos que dei, tem aula gravada ... enfim. Vamos de novo por causa das bobagens que a @uneoficial vem fazendo, especialmente sua presidenta @brunabrelaz
(segue o fio)
Há muita bibliografia já assentada sobre o fascismo e eu pensei que aquilo seria apenas tópico de história contemporânea até bolsonaro. O fascismo é um fenômeno complexo, o que significa dizer que suas explicações andam por várias áreas do conhecimento.
Da História para a psicologia, passando por sociologia, economia, antropologia e etc. Há causas para o fascismo assentada em todas elas e raramente elas são excludentes. Ocorre uma junção de fatores, mas há alguns consensos já bem estabelecidos.
Read 17 tweets
16 Oct
Bafão dos vizinhos conservadores.
O pai grita a plenos pulmões que não "cuidou da filha a vida toda" para ela casar com mulher. Supostamente, ele ficava em cima dos homens que se aproximavam e a guria apresentou uma namorada hoje.
Bafão!!!
E a gritaria pegando ...
O pai (militar aposentado) gritando com a namorada da filha e mandando ela ir "chupar outra b%^$&a".
Ao que a namorada responde:
"Não era isso o que tu me dizia quando tentava me comer, mesmo eu sendo amiga da sua filha"
Bafão!!
A mulher do cara chora.
Enfim, o submundo da família "conservadora brasileira". Não preciso dizer que tem uma bandeira do brasil estendida na frente e o cara fazia campanha aberta para Bolsonaro ...
Read 4 tweets
16 Oct
Esse é um caso interessante de comentar. Parece haver uma correlação positiva entre grau de escolaridade e voto em bolsonaro. Quanto mais estudo, mais voto no fascista. O que parece ilógico. (+)
Supostamente, com maior grau de instrução seria mais fácil perceber e reconhecer a vilania e incompetência de Bolsonaro. Mas a relação é diferente. Bolsonaro mostra o quanto nossa educação está calcada no viés de classe, e o quanto Bolsonaro opera em favor das classes altas.
Por um lado, quanto maior o grau de instrução, maior a origem elitizada do indivíduo (a revolução iniciada por Lula e Haddad não teve tempo de se completar). Assim, o voto em bolsonaro É o grau de escolarização São DEPENDENTES da classe que o indivíduo é oriundo.
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6 Oct
O bolsonarismo (que é a forma brasileira do fascismo) é um ethos. Não apenas um comportamento político, mas um conjunto de valores e práticas para a vida.
(segue o fio para entender o que é isso e pq a gente reconhece bolsonarista na rua ...)
O fascismo, entre inúmeras outras características, acredita que a sociedade é o local das disputas pelo poder e não um local de convivência. É o espaço social onde "os mais fortes sobrevivem" e os mais fracos "perecem".
Este tipo entendimento acarreta 3 consequências diretas. Por um lado a glorificação da violência e, in extremis, a guerra. Ela é vista como uma forma de "purificação" da sociedade. Por meio da violência, é possível "depurar" a sociedade de seus membros fracos que pouco contribuem
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