Como se cria um bolsonarista (fascista)?
Esta é uma pergunta que precisa de mais do que uma resposta teórica. Muito já se escreveu sobre o fascismo, mas como - na nossa sociedade - esta doença surgiu, cresce e continua a assustar?
Segue o fio (+)
Minha esposa é professora de inglês numa das localidades mais pobres e violentas do Distrito Federal. Professora concursada, como todos os colegas hoje no DF, lutando contra os abusos do governo do DF e os absurdos do governo federal. Ontem, um aluno dela de 16 anos fez perguntas
perguntas estranhas para uma aula de inglês. Queria saber se ela - professora de inglês - sabia o significado da palavra "blitzkrieg".
A verdade é que a educação do Brasil só existe porque os professores são explorados o tempo todo. Seja pagando para trabalhar, (+)
seja fazendo funções que não foram treinados, formados ou mesmo são pagos para fazer. A conversa foi indo para um ponto estranho em que o aluno falava sobre "as biografias do Stalin" que ele tinha lido, sobre o "holodomor" e sobre como ele estava estudando alemão para entender +
para entender algumas coisas. Sem treinamento na área, minha esposa me passou estas informações e eu, como especialista em história contemporânea percebi claramente com que tipo de bibliografia o menino estava tendo contato. Que tipo de história ele tava lendo.
Aficionado pela segunda guerra, repetia em aula que "Stalin foi muito pior que Hitler" e que a "história é contada sempre pelos vencedores" e, portanto, ele precisava aprender alemão para ler uma "história sem viés". Disse para a minha esposa que o inglês "não era suficiente".
Qualquer especialista na área de história contemporânea reconhece os chavões e o uso "emprestado" de conceitos e teses que o aluno simplesmente desconhece. Ao mesmo tempo a gente percebe o caminho que ele está trilhando. A glorificação da guerra, a banalização da violência e a +
e a desumanização do outro. Temas clássicos de quem estuda o nazi-fascismo, mas questões totalmente inacessíveis tanto a uma professora de inglês, quanto a um aluno de 16 anos de uma comunidade pobre do entorno do DF.
O professor de história do menino ganha 3 mil reais líquidos para dar aula para 12 turmas de 40 alunos numa cidade em que o aluguel de um apartamento quarto e sala custa entre 1200 e 1500 reais. Tá pagando a própria internet para dar aula e usando seu celular velho para ensino
celular velho para ensino remoto. Recebe do governo uma banana já que este não paga sequer os reajustes que há seis anos foi acertado na última greve e se resolver reclamar leva cassetete na cara da PM como uma pesquisa no google pode mostrar para vocês.
O serviço de apoio psico-social do colégio está sucateado. Contando com 3 profissionais para atender mais de 50 alunos com necessidades especiais e outros 200 ou 300 com pesadas questões sócio-comportamentais, incluindo aí alunos em situação de desacordo com a lei. 3 pessoas só
Em uma conversa mais próxima, o menino falou que "acessa a deepweb" para poder encontrar "a verdade" sobre algumas coisas e frequenta "fóruns" de "especialistas no assunto". Daí que qualquer coisa que minha esposa falasse era "bobagem" frente ao n. de especialistas que ele lia
Um aluno que passa batido pelo serviço pedagógico do colégio pois domina bem a linguagem e é "estudioso". Não tem nenhuma "queda" para a violência aparente e se interessa "por temas de história". Não fosse a história dele cair nos meus ouvidos e ele nem seria percebido por nós.
Friso que não seria percebido pela sociedade saudável, porque a parte doente da sociedade não apenas já detectou nele todo o "potencial" para o fascismo, como ativamente já lhe dá "subsídios" para que ele se convença do que já está convencido. "há males necessários" disse ele.
Até aqui, você já deve ter sentido um calafrio. Percebeu como estas monstruosidades se formam sobre crianças que não têm atenção suficiente para que se possa fazer uma intervenção cedo e evitar que se transformem em monstros. Mas o erro NÃO ESTÁ na escola ou no professor.
A bem da verdade, com 40 alunos em sala de aula e exemplos constantes de violência doméstica, de gênero, tráfico de drogas, violência da polícia e abusos advindos até de pastores, alguém "com interesse em história" jamais poderia ser visto como um problema.
Pior é uma política de governo que claramente trabalha para que não se tenha nenhum trabalho sobre a memória pública. Onde este menino está buscando fontes sobre a segunda guerra? No museu do holocausto? Nos projetos de universidades sobre história da segunda guerra?
Em algum museu nacional ou algum projeto de universidade brasileira sobre o assunto? Não, não há verba para nada disso.
Ele busca "fontes" nos vídeos do olavo de carvalho, do tal monark e de uma súcia perversa que segue estas criaturas abomináveis.
Repete argumentos batidos e sem lastro, cita autores que desconhece e não sabe contextualizar, apresenta problemas hermenêuticos que sequer consegue compreender do que exatamente se trata. Mas não encontra em nenhum projeto do governo qualquer guia para suas questões.
O vazio do governo quanto à memória pública é o que permite que olavo's e monark's enriqueçam falando absurdos e criando eleitores fascistas. E isto também com relação à escravidão, à ditadura militar, ao período imperial brasileiro e etc.
A votação do capitão fascista não é a causa disso. Ela é a consequência. Não é por acaso que Bolsonaro tira verbas da educação, ataca professores e desmonta as universidades. Enquanto não desmontarmos essa máquina que lucra com a ignorância e cria legiões de idiotizados (+)
Novos "bolsonaro's", "dallagnóis" e "moro's" se formarão em cada canto do Brasil. Esse é o verdadeiro processo de doutrinação que ocorre no Brasil. E também não é por acaso que este foi o lema de bolsonaro em toda a campanha.
Os grandes heróis deste país são os professores em sala de aula. Cada um que ganhando um salário de fome, pagando para trabalhar e sendo ofendido pelo governo e sociedade que luta para mudar o comportamento de um jovem e evitar que ele vire um monstro é um herói e heroína.
Só a educação nos salva do fascismo. Lute pela educação, eleja professores, apoie greves por melhores salários, cobre seus políticos pelo respeito aos professore e à educação. Pode não parecer, mas isso é trabalhar "pelo Brasil" e só isso pode nos tirar do buraco em que estamos.

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31 Oct
Então quer dizer que uma empresa que ficou milionária explorando o trabalho negro precarizado deixa de patrocinar um comunicador racista?
é como se dissesse que pode ser racista, lucrar com o racismo e até manter o racismo. Só não pode falar, aí perde o patrocínio
(+)
71% dos trabalhadores precarizados (os que ganham muito menos que 1 salário mínimo) são negros
almapreta.com/sessao/cotidia…
Achille Mbembe afirma que o racismo é uma máscara para estigmatizar e domar os corpos, mas o objetivo final é SEMPRE a exploração econômica.
Retirar patrocínio quando um racista se mostra racista não é suficiente. Principalmente sabendo que foi o "mercado" (essas mesmas empresas) que tornaram alguém ignorante e ignóbil um "podcaster de sucesso"
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27 Oct
Em alguns vídeos eu tenho dito que a única defesa contra o fascismo é a reconstrução dos círculos de filtragem dos comportamentos e posicionamentos doentios ou claramente ilegais.
Perdemos isso em 2013 quando "valia tudo contra o PT". Isso permitiu a doença do bolsonarismo. (+)
aos poucos o país vai retomando os controles sociais, educacionais e legais sobre os monstros. O tal Maurício Souza perdeu contrato e seu lugar na seleção por ser homofóbico. O STF prendendo Allan do Santos vai no mesmo caminho. Os monstros precisam ser colocados dentro das celas
O fascismo é parte integrante da sociedade (ou do ser humano segundo Arendt). E é uma doença que afeta ali cerca de 15% da população. Sempre. Ele é contido pelas "celas" simbólicas que criamos para encarcerar estes monstros.
Read 10 tweets
22 Oct
Sabe aquele sentimento de ter uma (boa dúvida) sobre o que fazer com aquele dinheirinho que sobra no final do mês? Você ainda se lembra como era chegar ao final do mês com 300 pilas sobrando?
Segue o fio para entender o "nervosismo do mercado" com o "furo do teto".
Primeiro, a gente tem que diferenciar "dinheiro" de "capital". A imensa maioria das pessoas confunde isso. Dinheiro é o que você tem (tinha) no bolso ou no banco. Serve tão somente para consumir e saldar dívidas.
Capital é um ente econômico abstrato que, quando combinado com trabalho, se reproduz.
Capital pode vir em diversas formas como maquinário, energia e etc. Ele se transforma durante os ciclos econômicos, mas conserva sua essência de reprodução.
Dinheiro NÃO se reproduz.
Read 25 tweets
22 Oct
A desculpa agora dos psolistas pela defesa que fizeram da lava a jato na PEC 05 é risível. Segundo eles, como a proposta não criava uma "ampla e popular forma de controle" sobre o MP ela "não resolvia nada e só piorava a coisa, porque permitia intervenção".
Piada ou má fé? (+)
Qualquer aluno de primeiro ano de sociologia ou ciência política sabe que não há caso conhecido de reforma institucional em que o impulso transformador tenha vindo de dentro da instituição. Instituições criam cultura própria, valores e percepções que buscam se auto-proteger.
Pensar em uma forma de "controle efetivo e popular" sobre o MP é fazer a famosa política de DCE em que toda a reunião termina com uma moção contra o "capitalismo financeiro mundial".
Só se vai modificar o autoritarismo e a hermeticidade das instituições brasileiras aos poucos.
Read 13 tweets
19 Oct
Vou tentar me fazer entender melhor.
Robert Paxton, em seu já clássico, Anatomia do fascismo, afirma que "vai estudar os fascistas para entender o fascismo". Isso pode parecer bobo, mas é uma enorme mudança na historiografia sobre o fascismo. (fio)
Até então, se estudava o fascismo para entender os fascistas, claramente em acordo com o estruturalismo vigente no século XX. Isso dava espaço a uma série de interpretações equivocadas do fenômeno. Porque tomava o sujeito como epifenômeno da ideologia.
Surgiram as explicações circunscritas à luta de classe, surgiram as teorias econômicas sobre o rebaixamento do valor da mão de obra e a acumulação do capital ao largo do setor financeiro ... enfim, a ideia era que o fascismo criava os fascistas.
Read 6 tweets
19 Oct
Já escrevi isso em muitos lugares, já falei nos cursos que dei, tem aula gravada ... enfim. Vamos de novo por causa das bobagens que a @uneoficial vem fazendo, especialmente sua presidenta @brunabrelaz
(segue o fio)
Há muita bibliografia já assentada sobre o fascismo e eu pensei que aquilo seria apenas tópico de história contemporânea até bolsonaro. O fascismo é um fenômeno complexo, o que significa dizer que suas explicações andam por várias áreas do conhecimento.
Da História para a psicologia, passando por sociologia, economia, antropologia e etc. Há causas para o fascismo assentada em todas elas e raramente elas são excludentes. Ocorre uma junção de fatores, mas há alguns consensos já bem estabelecidos.
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