O eletrocardiograma é o exame mais importante de toda a Medicina, pela sua versatilidade e utilidade no diagnóstico de doenças potencialmente fatais.
Sua história tem a ver com física e até cachorros. Nesse fio, eu conto como funciona o ECG através da sua história.
Em 1856, Kolliker e Muller descreveram a presença de potencial elétrico no coração. E não só isso: com uma pata de sapo, notou-se que a contração dessa pata precedia o batimento do coração na mesma solução.
Seria atividade elétrica a razão pela qual o coração bate?
O instrumento que mede corrente elétrica de pequena intensidade é o galvanômetro.
E um inglês chamado Augustus Waller usou um tipo específico de galvanômetro, o "capilar de Lippmann" para tentar monitorar e registrar a atividade elétrica cardíaca.
Uma coluna de mercúrio conectada a esse galvanômetro se movia para cima e para baixo, mas era preciso se arranjar uma forma com que o galvanômetro em si se movesse. Se não, todos os traçados ocorreriam no mesmo lugar do papel e ficariam ilegíveis e ininterpretáveis.
E a solução foi prender esse galvanômetro a um trem de brinquedo.
Assim foi obtido o primeiro eletrocardiograma humano (ainda com galvanômetro capilar).
Augustus Waller também fazia várias apresentações do seu novo aparelho usando seu doguinho Jimmy como "paciente".
Em resposta às injustas denúncias de maltrato, Waller falou que "se alguém sabe o que é ficar em pé no mar, conhece a sensação".
Mas Waller, apesar de ter entrado na história como o cara que registrou o primeiro traçado humano, parou por aí. Na verdade, chegou a afirmar que a eletrocardiografia não teria papel importante em hospitais.
É aí que entra Einthoven.
Einthoven, um médico holandês (1860 - 1927), modificou um outro tipo de galvanômetro, o "de cordas" usado em cabos transatlânticos, para uso em Medicina (1901).
O aparelho pesava 270 kgs e exigia que o paciente mergulhasse três membros em soluções salinas.
Esses três membros capturariam três derivações bipolares:
- Braço direito x braço esquerdo
- Braço direito x qualquer perna
- Braço esquerdo x qualquer perna
Estava desenhado o triângulo de Einthoven e nascidas as primeiras derivações do ECG: D1, D2 e D3 (usadas até hoje!)
Einthoven também se preocupou com a movimentação do galvanômetro, para que o registro fosse dado pelo tempo.
Pra isso, usou a força da gravidade. O papel passava pelo galvanômetro puxado por um peso caindo por gravidade a 25 mm/s. É a velocidade padrão do ECG até hoje!
Também convencionou que a cada 1 mV de diferença de potencial, seria registrada uma deflexão de 10 mm
E que o papel para registro também seria padronizado.
- 1 quadradinho por milímetro
- A cada 5 quadradinhos, vem uma linha mais grossa (chamado quadradão)
Exatamente como é hoje
Einthoven não parou por aí. Em seus dois artigos clássicos, “Le Telecardiogramme” (1906) e “Weiteres uber das Electrokardiogramm” (1908), promoveu o uso hospitalar do ECG.
Os pacientes do hospital de Leiden eram conectados ao galvanômetro (no laboratório) por fios telefônicos.
E começou a perceber que a atividade elétrica cardíaca podia ser padronizada em letras.
- Quando o átrio tem sua atividade, chama-se onda P.
- Quando é o ventrículo, a atividade é mais complexa, então, chama-se complexo QRS.
- Após isso, parece haver a repolarização - onda T.
A origem dessas letras (e não ABCD) é controversa. Alguns pensam que ele obteve inspiração dos trabalhos de Descartes sobre Óptica.
Outros pensam que ele foi humilde em pensar que, no futuro, com o avanço da técnica, novas deflexões poderiam ser (e foram) descobertas.
Em seus primeiros trabalhos, Einthoven foi capaz de verificar que doenças na valva mitral causam alterações na onda P (pois o átrio se sobrecarrega), assim viu extrassístoles e capturou fibrilação atrial e bloqueios atrioventriculares.
Quantas doenças esse exame vê!
Em 1924, Einthoven, que, com sua nova e magnífica invenção (o ECG), havia criado uma nova e pujante especialidade médica, a Cardiologia, é agraciado com um prêmio Nobel.
O ECG, quase 120 anos depois, é o exame mais realizado da Medicina. É capaz de dar diagnósticos mais variados de condições cardíacas graves como infartos e arritmias, mas também vê sinais de doenças extracardíacas, como AVC, tromboembolismo pulmonar, defeitos iônicos...
É um campo fértil para estudos e pesquisas, de modo que o conteúdo publicado há 5 anos, pode, muito provavelmente, precisar de atualizações e revisões.
Seu estudo é tão complexo que merece até um Tratado atualizado sobre o tema. Nada de estudar pelo passado.
O Tratado de ECG, de minha autoria e colaboração de exímios cardiologistas / arritmologistas / eletrocardiografistas do Brasil e do Mundo, está para ser lançado muito em breve.
Contará com quase 1000 figuras e contará com diversas reflexões sobre aplicação da MBE no ECG.
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O Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, localizado no Ibirapuera, em São Paulo, é um hospital público (com orgulho) cuja história se confunde com a história da Cardiologia no Brasil.
Segue o fio pra saber um pouco mais dessas duas histórias.
Antes de começarmos essa história, vale um breve contexto sobre como era a formação médica no começo do século.
Nas duas primeiras décadas do século XXI (não faz tanto tempo assim), não existiam especialistas em cardiologia, apenas em Medicina Interna (Clínica Médica).
O histórico Principles and Practice of Medicine, de William Osler, pai da Medicina Interna e precursor da MBE, de 1921 é o primeiro volume a trazer traçados de ECG em suas páginas.
O ECG é o exame mais importante da prática clínica, por sua versatilidade, impacto diagnóstico, disponibiidade e alcance.
O Manual Prático de ECG do Dante Pazzanese traz toda essa abundância de achados de forma concisa e ágil.
Dá uma olhada nesse fio pra conhecer a obra.
O Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, é uma referência na Cardiologia nacional e está marcado na história dessa especialidade por diversos feitos, como o implante do primeiro stent farmacológico do mundo.
Os números do Dante Pazzanese são superlativos. Em um mês, são realizadas 40 mil consultas e exames e 2 mil cateterismos.
Seu pronto socorro cardiológico é o maior da América Latina inteira - mais de mil pessoas internam anualmente aqui por síndromes coronárias agudas.
Você leva o carro a uma revisão e descobre que a pinça do carburador está quebrada.
Fica com aquela pulga atrás da orelha: essa peça existe mesmo?
Médicos ganham a vida inventando doenças que não existem e você acredita. Nesse fio eu disseco essa má prática médica.
O ato de “inventar” doenças é conhecido como “Disease Mongering”. O ato é complexo e orquestrado de maneira quase perfeita para que o leigo e o médico leigo não percebam onde mora o erro.
O charlatão conhece esse processo e se aproveita disso.
Começa pelo apelo óbvio à saúde. É que essa narrativa garante, quase que instantaneamente, um selo de aprovado pela comunidade e pela mídia.
Posicionar-se contra essas práticas é frequentemente confundido pela sociedade com ser contrário à Medicina ou à saúde.
Reginaldo é recém formado especialista de um dos mais respeitados hospitais de ensino do país.
Não importa a especialidade nem carga horária, Reginaldo esteve em risco de concluir sua Residência Médica ainda como um leigo.
E assim foi: defendeu tratamento precoce para covid.
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A Residência Médica é uma das maneiras pelas quais um médico pode se tornar um especialista.
Sua prova de admissão é um vestibular bastante concorrido e também criticável.
Suas questões são desconexas da realidade e não selecionam bons médicos com raciocínio crítico.
Reginaldo não foi ensinado sobre o que significa a frase “a clínica é soberana”. Pelo contrário, acreditou em memes que via no Instagram que diziam que soberana mesmo é outra especialidade.
Escolheu uma especialidade que “não precisava de clínica”.
A síndrome de Wolff-Parkinson-White é um defeito embriológico do coração presente em 1 a cada 1000 nascidos. Neles, ocorreu uma falha quando o órgão ainda se formava na 4a semana de gestação.
Nesse fio eu vou explicar o que isso significa e quais as consequências desse problema.
A primeira coisa que você precisa saber pra entender a síndrome é que ela é um defeito no esqueleto do coração.
Sim, nosso coração possui um esqueleto.
Ele sustenta as valvas e os músculos e também serve como isolante elétrico entre câmaras do coração.
“Nosso coração tem eletricidade?”
Sim! E o caminho por onde essa eletricidade é conduzida é bem estudado por nós eletrofisiologistas.
Quando o estímulo elétrico percorre corretamente esse caminho, nosso coração bate na sequência perfeita: primeiro átrios, depois ventrículos.
Gutierrez é um respeitado médico especialista. Se vangloria da sua capacidade diagnóstica e de suas decisões terapêuticas satisfatórias.
Em 2020, ele achou racional prescrever cloroquina. Em 2021, faz campanha contra a vacinação.
Segue o fio para entender.
No primeiro atendimento do dia, Gutierrez atende um resfriado comum. Com anos de atuação, veio a constatação que muitos pacientes exigem remédios para “justificar a consulta”.
O resfriado é uma doença auto-limitada: todos os pacientes melhorarão um dia ou outro.
Quando o paciente melhora, Gutierrez recebe elogios pela sua receita “diferenciada” -um kit de vitaminas e outras medidas ineficazes.
Gutierrez esquece do poder que a história natural da doença tem nesse caso - se o paciente já iria se curar, como afirmar que ele impactou nisso?