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Ontem aconteceu o chamado "debate do século" entre Jordan Peterson e Slavoj Zizek. Segue a thread com um resumo comentado do que aconteceu no debate: 👇👇👇
Sobre o tema do debate, "Felicidade: capitalismo vs marxismo". Antes de assistir o debate já considerava o tema bastante infeliz (rsrs). Mesmo com meu parco conhecimento da obra de ambos, sei que nem Peterson nem Zizek dão grande centralidade para o problema da felicidade.
Peterson fala um pouco sobre o capitalismo, mas não é o centro das suas preocupações. Zizek até bebe muito do marxismo, mas é um marxista muito heterodoxo, com uma visão dele sobre temas clássicos do marxismo. Ou seja, o tema não os leva a colocar o melhor das suas reflexões.
2. Peterson se organizou para debater exatamente o que o tema do debate propunha enquanto Zizek disparou sobre todo tipo de tema como de costume. Isso fez as primeiras 1 hora e 30min serem praticamente inúteis.
Peterson disse ter buscado ler Zizek para entendê-lo melhor, mas como ele publica demais optou por retomar o clássico do marxismo, "O Manifesto Comunista", e usou sua fala inicial para atacar as inúmeras inconsistências do manifesto.
Tempo jogado fora, o marxismo do Zizek é muito pouco tradicional, o Manifesto não é importante para a visão dele. Zizek não organizou sua fala nem em torno do tema felicidade, nem buscou se informar um pouco sobre Peterson.
Repetiu anedotas, falas e reflexões de outras palestras suas sobre temas variados, sem uma linha condutora clara como é típico do Zizek. Não fez a menor questão de defender o marxismo, seja o ortodoxo que Peterson atacou, seja a leitura heterodoxa dele sobre a importância de Marx
2. O evento propriamente dito para mim começa após as primeiras 1h12min, quando Zizek conclui sua exposição inicial e começa o diálogo alternado entre eles.
De novo, fica patente o "problema" de Peterson direcionar suas falas para os temas do debate (felicidade, capitalismo e marxismo) enquanto Zizek fala livremente sobre o que pensa sobre os problemas do mundo em geral.
3. Os pontos centrais do Peterson: 3.1. Psicologia da felicidade sobre a relação entre renda e felicidade é que a renda importa apenas até superadas as maiores dificuldades maiores e a partir daí dinheiro não garante felicidade;
3.2. O capitalismo contemporâneo de fato gera muito desigualdade - como todos os outros sistemas humanos -, com a diferença de que no capitalismo os pobres também estão ficando mais ricos em uma velocidade sem paralelo, logo apontando no sentido de maior felicidade humana;
3.3. Apesar disso, ele pessoalmente defende que o que importa de fato não é a busca por felicidade, mas a busca por significado.
4. O ponto central do Zizek não foi nem uma defesa do marxismo, nem da mudança radical para a felicidade, nem uma crítica radical do capitalismo, mas sim uma crítica ao próprio conceito de felicidade.
4.1. Para Zizek, o problema é que organizações sociais muito autoritárias conseguem prover novas fontes de felicidade, de formas que podem perverter nosso entendimento usual de uma boa sociedade.
Por exemplo, 4.2. Um governo muito centralizado e autoritário tira das pessoas o fardo da responsabilidade pelas decisões, podendo prover felicidade de colocar a culpa nos outros e o alívio de não ser responsável pelos males sociais.
Ou ainda, 4.3. Uma privação esporádica como aquelas vividas na União Soviética podem acabar deixando as pessoas mais felizes com os tempos que não estão passando por privações.
4.4. Assim, felicidade para ele é um "efeito colateral necessário", não pode ser colocada como objetivo principal, sob pena de criar estruturas distópicas que apesar da sua distopia ainda assim conseguem fornecem felicidade;
4.5. O perigo para ele é que modelos de sociedade que combinam capitalismo com autoritarismo, como o Chinês, acabem tendo apelo social e o futuro aponte para isso.
4.6. Problemas ambientais graves são impraticáveis de se resolver apenas com a lógica do mercado e pressionam para a expansão do governo e da regulação.
5. Peterson não entende o que há do marxismo clássico em Zizek e Zizek diz que o movimento dele é de Marx para Hegel e que ele se considera mais hegeliano que marxista. Marx disse: "Os filósofos interpretaram o mundo, o que importa é mudá-lo", para Zizek agora é o contrário,
já se tentou agir muito e o momento agora é voltar a pensar. Não temos as respostas, nisso ele se considera um pessimista. Isso é algo que ele diz em palestras há mais de dez anos, nenhuma novidade aqui para quem conhece um pouco do Zizek.
6. Peterson é pego de surpresa pela posição do Zizek, mas critica o fato de que ao trazer o marxismo e se colocar como marxista a tendência é que os mais jovens adotem a versão mais radical e maniqueísta de Marx e não essa visão do Zizek que identifica as limitações do autor.
Zizek rebate perguntando onde ele encontra os "marxistas pós-modernos" que ele tanto critica e o que há de marxista neles
Zizek reconhece que existem essas pautas pós-modernas do politicamente correto, mas vê elas como uma hiper-moralização dos discursos que na visão dele são uma aceitação de derrota no plano político e econômico que eram o centro do marxismo.
Em talvez o ponto de maior pressão direta, Zizek insiste que Peterson diga o nome de alguns acadêmicos que adotam esse marxismo que ele critica. Thread continua no próximo tuíte em resposta aqui.
7. Peterson não cita diretamente o nome de alguém, mas aponta uma pesquisa entre acadêmicos dos EUA que encontrou que mais acadêmicos se identificam como marxistas do que como conservadores.
a visão de Peterson, o pós-modernismo é uma reformulação da tese central do marxismo da divisão do mundo entre oprimidos e opressores, mas trocando "burguesia versus proletariado" por quaisquer grupos identitários contra quaisquer outros grupos identitários.
Outro ponto comum é equacionar sempre um dos grupos como sendo o opressor e outro grupo como sendo o oprimido. E, assim, como em Marx, é tomado como pressuposto que o oprimido é moralmente superior tal como o proletariado era ingenuamente visto por Marx.
8. Zizek critica essa interpretação de Peterson. Para ele, pensadores como Foucault formaram seu sistema de pensamento justamente criticando o marxismo. E Zizek é crítico desse movimento também, mas por outra via.
Para ele o fracasso desses novos "radicais" é que nunca realmente jogaram o jogo da mudança radical. Eles tomaram como bom estar marginalizado, enquanto no velho comunismo ao menos se admitia que estar marginalizado não era bom, o desejável era disputar o centro e mudar.
9. Sobre felicidade diretamente. 9.1. Peterson concorda com Zizek que felicidade não deve ser um objetivo principal a ser buscado, mas um subproduto de outras ações. Para Peterson, você não pode escolher ser feliz ou ser feliz por força de vontade.
O que você faz é buscar significado, buscar a boa vida. Para isso, se aceita o que há de mal no mundo e adota uma posição de responsabilidade máxima diante disso.
Diante desse quadro não se busca apenas fazer o bem, mas fazer o bem no limite das suas possibilidades, com o horizonte de que no futuro conseguirá fazer isso ainda mais.
É esse horizonte crescente que imbui de significado suas ações e pode produzir a felicidade como efeito colateral, pois você se verá "no lugar certo e na hora certa, fazendo o que acredita ser o certo, no máximo das suas competências e abrindo caminhos para o futuro".
9.2. Para Zizek a felicidade é uma "queda", o que "acontece", se "cai" na felicidade. Por isso o caminho para a felicidade não é uma linha reta, mas a própria luta, as dificuldades de percurso.
Ele não cita diretamente, mas essa é basicamente a visão hegeliana da liberdade (que eu pessoalmente considero a melhor ideia de Hegel).
Por fim, Zizek critica a visão de Peterson na medida que ela foca muito no indivíduo e na organização da vida dele, mas às vezes a desordem e a bagunça vem do sistema social, não do indivíduo.
10. Peterson concorda com a visão do Zizek de que a vida é caracterizada por luta e sofrimento. Mas defende que o foco dele no indivíduo e de começar por aceitar sua posição difícil e agir diante dela se deve a o que pesquisas de psicologia apontam como necessárias...
...para levar as pessoas a saírem do seu estado de conformismo e inação. Porque é a partir da ação local que ela consegue tomar responsabilidade maiores, inclusive do sistema como um todo.
Se você resolve um problema pessoal com grande diligência, você pode ajudar a resolver um problema social, no mínimo porque mais pessoas também passam por problemas similares.
E você deu os passos iniciais, foi bem sucedido e está caminhando no sentido de conseguir se responsabilizar por mais problemas, mais difíceis ou que envolvem a sociedade.
A ação individual também é um caminho de teste e erro consigo mesmo que é moralmente adequado, pois ir para o mundo e testar e errar com a vida de outras pessoas seria um problema maior para os outros e é um problema de falta de responsabilidade também.
11. Eles falam brevemente sobre ideologia e moral, mas honestamente não vejo muito o que se extrair daqui. São impressões vagas sobre os temas, anedotas, nada muito concreto e não dialogam muito um com o outro.
12. Comentários finais de cada um. Peterson diz que uma das ideias mais perigosas na academia hoje é que diferentes grupos com diferentes identidades não seriam capazes de se comunicar, não existiria diálogo possível, mas que o debate entre ele e Zizek teria mostrado o contrário
Não é necessário concordar com tudo, mas cada um sai um pouco melhor, com novas coisas para se pensar.
Para Zizek, o que ele gostaria que as pessoas levassem do debate é que existem alternativas, há mais formas de pensar do que a oposição política principal hoje, uma direita de novos conservadores radicais e uma esquerda politicamente correta.
Há muita preguiça de pensamento e é preciso romper com essa preguiça, pensar os temas e não tirar conclusões e rótulos que cortam caminho, simplificando até o ponto de impedirem o pensamento.
De modo geral, por conta do problema que coloquei no começo do tema não ser favorável ao que os dois de fato sabem mais, acho que não há nada muito profundo a se extrair dessa debate. Mas a mensagem final de ambos acredito que é razoável e compatível com o debate como um todo.
É perceptível que ambos têm interesse no que o outro estava dizendo, há disputas pontuais mas também há reconhecimentos pontuais de concordância. São figuras famosas que poderiam muito bem não se dispor a essa interação.
De fato, pessoas muito menores em influência que eles, em debates também muito menores, por vezes se portam como sumo-sacerdotes da única posição possível e desprezam o que o outro tem a dizer. E não é o que se vê nesse debate.
Apesar de não haver nada de muito concreto que se possa tirar dele, há um entretenimento razoável e há esse elemento raro em nossos tempos de ver pessoas que realmente discordam e pensam por paradigmas completamente diferentes interagindo
ambos assumindo não ter todas as respostas e tentando colocar suas posições ainda assim. Passa longe de "o debate do século", mas tem o seu valor como demonstração de abertura para o diálogo que acredito que esteja muito, muito em falta em nossos tempos.

Fim do thread
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