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Segue o fio alvinegro para os momentos mais assombrosos de "Elogio de uma tarde inútil", texto sobre um Botafogo x Marília qualquer em Caio Martins em 2003.
O autor, João Moreira Salles, usa o jogo como pretexto para refletir sobre a alma dele, a nossa alma.
A alma botafoguense.
"Seria bom se a vida fosse um domingo de sol no Taiti. Acontece que não é. Os pessimistas – melhor chamá-los de céticos – sabem disso. Nós, os botafoguenses, também."
"Um de nossos santos padroeiros, o alemão Schopenhauer, torcedor do Botafogo, dizia que o universo é obra de uma vontade indiferente (...). Ninguém liga para as nossas dores. Pior: é bem possível que ainda venham nos atrapalhar. Dependemos exclusivamente de nós mesmos. "
"Fomos ao estádio assistir a um jogo da 2a divisão cujo resultado não alteraria significativamente a tabela. Mas estávamos lá. Este é o ponto, e chego a pensar: talvez por isso mesmo estivéssemos ali, para provar nosso amor incondicional ao time."
"Quando o Botafogo está no inferno, ele precisa de quem lhe estenda a mão. Estamos aqui para isso. Comparecer na vitória é fácil. Difícil é ir a jogo contra time que veste Marilon. Não esperamos muito em troca, apenas que os jogadores se esforcem. O resto, aceitamos."
“Nós somos sujeitos decentes, capazes de amar por amar, intransitivamente, sem nenhum motivo enviesado. Não queremos ser os maiores do mundo nem os mais queridos do mundo. Somos botafoguenses, e isso nos basta”.
“Em um mundo no qual cada gesto é pensado em relação à sua eficiência, em que tudo é estratégia, quando não artimanha, ir ao estádio torcer pelo Botafogo é verdadeiramente libertário."
"Somos o avesso do utilitarismo. Pelo menos durante 90 minutos, nada do que fazemos serve para tocar a vida adiante."
"No dia em que o novo Caio Martins foi inaugurado (fizemos uma reforma no estádio), lá estava Nilton Santos, sem dúvida o maior botafoguense vivo. Viera de longe, de Brasília, para prestigiar o esforço. Nas dependências do Botafogo, por onde anda é aplaudido."
"Acredito que não deva ser fácil para os jogadores entrar em campo com Nilton Santos na tribuna. Fico imaginando um pintor que, momentos antes de pincelar seu primeiro afresco, ouvisse do sacristão: “Michelangelo! Você aqui, rapaz! Veio dar uma espiadinha?”.
"Aos quatro minutos de jogo, Dill marca o primeiro gol da partida. Com isso, inaugurou o placar. Apareceu seu nome, sua assinatura, a frase (na letra dele mesmo) “Jesus é a paz” e o número da sua camisa: 7. Não podia ser diferente."
"Na metafísica botafoguense, a única camisa que conta é a 7, a mesma de Garrincha, de Zequinha, de Rogério, de Jairzinho, de Maurício, de Túlio. Só ela teria a autoridade moral e a gravidade histórica para inaugurar o placar mais moderno da cidade."
"Quando o Botafogo está em campo há sempre mais coisas entre as traves além de 23 sujeitos e uma bola. Somos muito devotos do além. Pode parecer estranho, visto sermos pessimistas convictos e convencidos de que não temos ninguém no mundo. Mais uma das sutilezas da nossa alma."
"Não somos agnósticos, muito pelo contrário. O além-mundo alvinegro não é um universo despovoado de espíritos. É exatamente o contrário: todo botafoguense sabe que tem gente demais do lado de lá e que a maioria torce pelo time adversário. "
"Se puderem nos pregar uma peça e nos fazer perder o jogo aos 47 do segundo tempo, não hesitarão sequer um segundo. É por essas e outras que, como se diz por aí, um jogo do Botafogo só acaba quando termina. Até lá, vivemos na mais precavida desconfiança."
"Contávamos com a ajuda de Garrincha, Didi e Nilton Santos, o que não é pouca coisa. Hoje não temos mais nada. Os velhos heróis se foram e o Redentor já não pode olhar por nós (não jogamos mais no Rio). Precisamos de outros expedientes. Rezar a ave-maria é só um deles."
"Às tantas, a bola é isolada e cai na arquibancada (...). Preocupante: no orçamento sofrido do Glorioso, uma bola perdida é menos um Gatorade na dieta do atleta."
"A bola é levada para a marca do pênalti. A torcida começa a entoar o “Leandrão, faz um gol pra torcida do Fogão!”. É mais do que um pedido, é quase uma súplica. A torcida sabe do que Leandrão não é capaz. Evidentemente, Leandrão desperdiça o pênalti. A torcida aplaude Leandrão"
"Somos uma torcida que observa, que reflete e duvida. Para nós, a dúvida é um fim, não um meio. Duvidamos de tudo. Duvidamos de pênalti: “Ih, esse ele vai perder”. Duvidamos de placar de 4 x 0: “Agora eles vão virar”. Obviamente duvidamos de todos árbitros (são flamenguistas)."
"Nunca vi botafoguense que se preza sair pulando de alegria antes da hora."
"Em 90 minutos fomos ao paraíso, caímos bruscamente de volta ao chão, descemos na marra ao inferno e finalmente nos vimos içados ao ponto de partida. Como os objetos de um museu, terminamos no mesmo lugar: 2 x 2. Uma tarde perfeitamente inútil."
"Tivemos céu e inferno, mas nenhum intervalo entre os dois. Nenhuma promessa de alívio — e aqui está a essência do Botafogo."

(MOREIRA SALLES, João)
Íntegra de "Elogio de uma tarde inútil", de João Moreira Salles, publicado originalmente no extinto site NoMínimo, pode ser lida aqui: estudoshumeanos.com/2012/09/23/elo…
FIM DA THREAD SOBRE UMA VISÃO DA ESSÊNCIA ALVINEGRA
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