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Sobre exploração, ou o que um marxista tem a dizer sobre o tema?

Por conta da defesa do trabalho infantil feito pelo presidente e seus filhos/comparsas, começamos a ver a extrema-direita de internet se lambuzar em comentários do tipo: "eu trabalhei na infância e tô bem".
Isso é absurdo e pode ser questionado de diversas formas (essa gente, por acaso, tá botando filhos e netos para trabalhar também? e que tipo de trabalho é esse?). Mas vou deixar esses questionamentos de lado e propor outro, mais próprio das ciências humanas e menos focado...
...nas experiências individuais dos sujeitos. Afinal de contas, não se faz ciência social nenhuma com base só no que o seu umbiguismo acha que está certo, ou não.

A pergunta aqui é outra: como se separa trabalho de exploração?
Bem, há muitas coisas que podem separar trabalho e exploração. Em muitos casos, as pessoas podem dizer que é subjetivo (se eu trabalho num mercadinho, varrendo o chão, posso reclamar do pagamento...se ele for muito baixo, vou me sentir explorado, por exemplo).
Mas se a separação é subjetiva, não significa que ela não tenha amparo social. Sabe-se, por exemplo, que as meninas recebem muito mais tarefas domésticas do que os meninos e isso impacta não apenas sua dependência econômica (elas não recebem por ajudar a lavar os pratos, p. ex.),
mas também seu desempenho escolar.

generonumero.media/tarefas-domest…
As meninas são exploradas ou se sentem exploradas? Aí depende de como elas travam essa relação no ambiente doméstico...mas se elas ganham menos que os meninos com mais trabalho e se isso impacta as suas possibilidades de aprimoramento (escola), então algum grau de exploração tem.
Aí a gente chega no ponto da coisa: o grau de exploração. Todo trabalho tem, em alguma medida, um grau de exploração. Esse grau é mediado pelos sujeitos, claro, mas vejam: para haver essa mediação, é preciso que tenhamos algum tipo de autonomia.
Se eu sou um motorista de aplicativo, por exemplo, eu posso dizer que sou autônomo para fazer minhas próprias horas de trabalho, o que é verdade. Por outro lado, preciso me alimentar, preciso pagar boletos, sustentar família...qual o grau de autonomia que eu tenho, de fato?
"Ah, mas a empresa não tá explorando". Bem, essa é uma questão fascinante do mundo de hoje: não é mais necessário ter um patrão exercendo a exploração direta, me coagindo fisicamente a trabalhar. Tem um jeito muito mais eficaz: fazer com que eu tenha a necessidade compulsiva...
...de dinheiro. Esse fator, tão singelo, lança as pessoas a se submeterem a graus de exploração ainda maiores. Quanto mais necessidade de dinheiro elas constituem, mais elas vão aceitar graus ainda maiores de exploração.
Penso dinheiro, claro, por um motivo simples: na nossa sociedade, quase todos os meios de subsistência se obtém com...dinheiro. E para além da subsistência, todos os símbolos de status possíveis são também mediados por dinheiro.
Ou seja, além da subsistência, a própria necessidade de reconhecimento social nos lança para o mercado de trabalho. E quanto mais fragilizados, mais estamos sujeitos a exploração.
Quando uma elite escrota fala que o trabalho infantil lhes deu caráter, esquecem que por um lugar de classe (e também de raça, assim como gênero, convém dizer), sempre puderam negociar a autonomia do seu trabalho. Mesmo quando crianças.
Em outras palavras, o que lhes deu caráter foi basicamente um tipo de trabalho no qual eles tinham autonomia o suficiente para negociar suas condições de trabalho. Infelizmente, esse é um lugar privilegiado numa sociedade que até um tempo atrás era marcada pela escravidão.
Mas tudo isso significa que a exploração é subjetiva? Não. Mas essa é uma esfera importante que os marxistas não podem esquecer. Porque há também uma esfera objetiva, facilmente calculável: a relação entre renda líquida do patrão e a renda líquida dos trabalhadores.
Tudo aquilo que na linguagem marxista aparece como "mais-valia" (ou aquilo que o patrão deixa de pagar ao operário para ter uma renda extra a qual ele transforma em capital para reinvestir na produção - ou em outra atividade não-produtiva) é a ideia central.
Mas vejam, é possível que haja extração direta de mais-valia e, mesmo assim, as pessoas não se sintam exploradas. George Orwell, quando trabalhou de garçom na França, dizia que seus colegas eram os trabalhadores mais explorados de Paris, mas todos queriam ser servidos um dia.
Reconheciam que seus patrões, donos dos restaurantes mais chiques, subtraiam deles algumas boas horas de pagamento por seus serviços. Mas ao invés de se organizarem e lutarem contra isso, queriam eles um dia serem servidos. Um desejo que emerge da subjetividade da própria...
...exploração.

Mas nem todos são assim. Tem muita gente que trabalha muito, é explorado e, quando ascende socialmente, tenta quebrar esse ciclo de superexploração a partir de seus filhos. Não são poucas as narrativas de pais e avós que trabalharam na infância e...
...passaram a exigir que seus filhos não trabalhassem e que se dedicassem aos estudos, acreditando que quanto mais qualificados eles fossem, mais autonomia eles teriam para negociar os graus de exploração que estariam sujeitos no mercado de trabalho.
E, claro, muitos outros se organizaram coletivamente, pois perceberam que uma das formas de negociar os graus de exploração decorrentes do trabalho assalariado passava por um forte sentimento de solidariedade entre iguais. Se todos se unirem, os patrões iriam nos ouvir.
Mas é possível, então, se sentir explorado sem ser objetivamente explorado? Bem, possível é. Mas essa subjetividade parece estar bem próxima do andar de cima, dos donos de empresas que trabalham 12, 14, 16 horas por dia e se orgulham disso.
Mas no plano objetivo, seu trabalho não envolve ser explorado, mas sim sistematizar a exploração dos seus funcionários. E se isso leva tempo e exige dedicação, isso se dá justamente pela necessidade de calcular constantemente o valor possível de ser extraído do trabalho alheio.
Por fim, hoje li uma matéria que me impactou e que traz outra perspectiva para pensar exploração e trabalho (no caso, trabalho infantil). Trata-se dos relatos de meninas menores de idade que trabalham nos bordéis de Bangladesh.

theguardian.com/global-develop…
"Ah, mas não é a mesma coisa, isso é exploração sexual de trabalho infantil".

Sem dúvida, há dimensões subjetivas muito mais impactantes do que ficar varrendo um mercadinho.

Mas a dinâmica central gira em torno da autonomia - ou da falta dela. E quando falta autonomia,
na escala dessas meninas bengalis, o que a gente tem é uma outra relação. O trabalho praticamente some. Há somente a exploração. No caso, a exploração do corpo, dura e violenta. O trabalho se torna um dado fragmentário, praticamente não-existente.
Esse talvez seja o único caso onde creio ser possível separar, de fato, trabalho de exploração. Mas principalmente porque, como muitas marxistas e feministas advertem, isso não é mais um trabalho apenas. E, consequentemente, a exploração atinge um índice inacreditável.
Logo, do ponto de vista marxista, é possível dizer que todo trabalho envolve algum grau de exploração a ser mediado. Mas há algumas poucas relações de exploração em que o trabalho praticamente não está presente. E, levando em consideração os privilégios de classe e raça...
...de nossas elites, é possível afirmar com certeza que ela é incapaz de reflexões mais elaboradas sobre as relações entre exploração e trabalho porque, no final das contas, ela conhece muito pouco sobre o tema (mal e mal tem sua experiência individual pra ajudar).
Não quero com isso encerrar o debate. Mas é para pensar nas nossas próprias relações de trabalho. E lembrar que uma das formas mais eficazes de negociar a exploração que estamos sujeitos (se você não é a Leila Nagle ou o Alexandre Garcia) é se juntar com outros no mesmo barco.
PS: Esqueci de dizer, mas como marxista, a ideia de negociar a exploração é fundamental por outra coisa. Para abolir ela de vez. Se todo mundo se juntar, rola. :)
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