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Na #AulaFio de hoje vou falar sobre a obra-prima de Erico Verissimo, O Tempo e o Vento, o grande romance épico rio-grandense. Já ouviu a sinfonia da História?

Segue a Aula Fio...
Para começar, tenho de ser honesto. O Tempo e o Vento não é uma leitura corriqueira, e confesso que não a recomendaria para iniciar a leitura da obra de Erico. É um projeto que vai lhe tomar algum tempo, dar-lhe tesouros e dissabores além de exigir algo em troca.
Também não pretendo fazer nem uma resenha e nem um resumo. Pense nestes fios (farei um para cada parte do épico), como um panorama aperitivo de leitura. Leia. E se interessar-se, busque a obra original...
O Tempo e o Vento é uma obra dividida em três partes: “O continente”, “O Retrato” (ambos com dois volumes cada) e “O Arquipélago”, mais robusto, com três volumes. E conta uma história dupla, que se enlaça. A do Rio Grande do Sul e a da família Terra-Cambará.
A primeira parte, O Continente, foi lançada em 1949. Sendo o primeiro livro ficcional desde O Resto é Silêncio, onde seu protagonista, Tônio Santiago, um análogo do próprio Erico, vislumbra ao ver a atuação de uma orquestra ...
... um romance épico onde cada personagem dentro de cada época, formaria uma sinfonia histórica e mnemômica, através dos séculos de guerras, decepções, conquistas e alegrias...
A estrutura narrativa não é linear, mas em contraponto narrativo, onde o Capítulo “O Sobrado”, com ações em 1895, é fragmentado em sete partes, em que cada uma termina com uma evocação mnemônica que leva aos outros capítulos.
O contraponto não é apenas espacial, mas também temporal, baseado em objetos (receptáculos ) e lugares de memória, termos do historiador francês Pierre Nora.
Entrecortando a trama, nas margens da História, da Memória, da sociedade, estão os Carés, família pobre que tem suas memórias misturadas às dos Terra-Cambará. Os percebemos pelas rachaduras da trama, nas entrelinhas desde a Guerra dos Farrapos.
A ação de 1895, serve como fio condutor e gerador de expectativa. A família Terra-Cambará está cercada dentro do Sobrado, residência mais imponente de Santa Fé (cidade imaginária análoga à Cruz Alta natal de Verissimo).
Licurgo, o líder da família, é o intendente Republicano (partidários do legalista Júlio de Castilhos) de Santa Fé e quem lidera o cerco é Alvarino Amaral, líder local dos Federalistas (partidários de Gaspar da Silveira Martins, que defendia uma nova constituição parlamentarista).
Depois da apresentação deste cenário, personagens e situações irão ecoar (ou evocar?) o passado. Primeiro, um dos filhos pequenos de Licurgo mostra que possui o punhal de prata que pertencia ao avô...
O capítulo “A Fonte” passa-se entre 1745 e 1756, contando a história do Padre Alonso, jesuíta que salva uma índia, estuprada por um bandeirantes, que morre ao dar a luz. Alonso torna-se padrinho e cria o menino, a quem dá o nome de Pedro.
Na Missão de São Miguel, Pedro cresce. O pano de fundo são as Guerras Guaraníticas e a expulsão dos jesuítas do território português. A história de Alonso e Pedro se entrelaça com o fim daquele mundo, e antes de fugir, Pedro ganha o punhal de prata das mãos do homem que o criou.
A ação retorna para 1895, agora os filhos de Licurgo ouvem os sussurros de sua avó, Bibiana, que em dado momento, fiando a velha roca, ouve o similar do vento e lembra da própria avó...Ana Terra.
Começa o terceiro (cronologicamente o segundo) capítulo : “Ana Terra”, passado entre 1777 e 1811.
A protagonista é Ana Terra, que acompanhou seus pais, Maneco e Henriqueta, e seus irmãos (Antônio e Horácio) de Sorocaba até o Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Vivem em uma estância precária e isolada, com poucos objetos a se destacar um Cristo de nariz carcomido e a roca que Bibiana irá usar no cerco de 1895.
A relativa tranquilidade da família é interrompida quando Ana Terra acha um homem ferido a tiro e desmaiado perto da sanga (riacho) onde ela lavava roupa. Ela grita por socorro e a família trata do ferimento e acolhe o homem, que se revela Pedro Missioneiro, agora adulto.
Aos poucos, Pedro se integra à família, demonstrando habilidades que vão desde a escrita e leitura, passando pela habilidade de contar histórias e chegando à cerâmica e doma de cavalos, mas sempre é alvo do ressentimento dos homens incultos à quem serve.
Ele e Ana envolvem-se e ela engravida. Maneco e seus filhos matam Pedro, que havia antes deixado o punhal com Ana, e renegam a filha e irmã. O resultado do envolvimento foi Pedro Terra, a justaposição entre Maneco e o homem que matou.
Anos se passam e o destino leva Ana e Pedro até a recém fundada Santa Fé, fundada pelo Cel. Ricardo Amaral (leiam para saber como). Pedro cresce e casa-se, tendo dois filhos. Juvenal e Bibiana Terra.
Vale lembrar que este capítulo foi publicado separadamente e foi justamente por ele que conheci a obra de Verissimo.
Novamente 1895 e Bibiana, sozinha e senil, lembra de seu marido, o Capitão Rodrigo Cambará.
A ação do capítulo “Um certo Capitão Rodrigo” passa-se entre 1828 e 1936. Essencialmente, é um romance de putrefação. Explico...
Rodrigo logo se apresenta como um homem festivo, corajoso e sedutor.
Logo simpatizamos com ele, e logo percebemos suas falhas de caráter, mas a relevamos, justamente por sua coragem e simpatia. Enfrenta os poderosos Cel. Chico Amaral e derrota seu filho, Ricardo Amaral Neto em um duelo, onde marca seu rosto, mas quase morre.
Mas a paz e o casamento com Bibiana não fazem bem ao capitão, ou realçam suas falhas, e rapidamente começa a demonstrar o quão ausente é destrutivo ele pode ser. Só ao morrer no início da Guerra dos Farrapos torna-se novamente o herói do início da narrativa.
Voltamos à 1895, onde Licurgo tem de amparar sua esposa, Alice, que febril se desperta ao lembrar da filha natimorta durante o cerco, enterrada no porão do Sobrado... é o gancho para o próximo capítulo, “A teiniaguá”, passado entre 1850 e 1855.
Acompanhamos a história dos primos Florêncio Terra, filho de Juvenal e Bolívar Cambará, filho de Rodrigo, que recém chegados da campanha militar contra Rosas, caem nas graças do comerciante Aguinaldo Silva, e sua neta adotiva Luzia.
Ele havia comprado o terreno onde Ana Terra havia construído sua casa e Pedro viveu até o fim de sua vida, e erguido o Sobrado que estará cercado por federalistas em 1895.
Os primos ficarão fascinados por Luzia que encoraja a disputa por sua atenção. Enquanto isto, Bolívar cada vez mais se indispõe com Bento Amaral, o filho do homem que seu pai marcou o rosto.
Basta dizer, para não estragar a trama, que Luzia casa-se com Bolívar, e com ele tem um filho único, Licurgo. Tudo isto é testemunhado pelo médico alemão Carl Winter, que também se percebe fascinado por Luzia.
Além disto, Bolívar é de longe o herói mais romântico, no sentido estético, da trama. Tem integridade moral, e leva tudo até as últimas consequências.
Voltamos ao cerco. O filho de Bento Amaral, Alvarino, não dá trégua à Licurgo, que teima e não se rende.
Um de seus empregados lembra da Guerra do Paraguai (1864-1870). Mas não é desta guerra que trata o próximo capítulo.
“A Guerra” passa-se entre o final de 1869 e o início de 1870. A guerra no caso é travada pela impetuosa Luzia Cambará e sua sogra, Bibiana.
Ambas desejam ser a senhora inconteste do Sobrado e dirigirem o destino do herdeiro de Bolívar, Licurgo, ainda inconformado de não poder ir à guerra, por aí da ser jovem.
A trama é acompanhada pelo dr. Carl Winter, que troca a fascinação por Luzia, que tem um tumor inoperável,pela admiração por Bibiana, que defende a sua posição na vida do neto e na gestão da fortuna da família. O tumor cresce em Luzia,tanto quanto a amargura e a culpa em Bibiana.
Volta-se para 1895, onde Licurgo está preocupado com sua amante, que ficou na estância da família, o Angico. Revela-se tratar-se de Ismália Caré,descendente da família que sempre esteve presente na trama, mesmo que apenas em suas margens, e agora faz parte do clímax da narrativa.
“Ismália Caré” passa-se em 1884. Licurgo está noivo da prima, Alice, filha de Florêncio e irmã de Maria Valéria,que em 1895,cuida da irmã e sobrinhos e guarda ressentimento do cunhado e primo, que a preteriu ao escolher a irmã. Bibiana ainda tem como confidente o dr. Winter.
Acontece que em paralelo ao noivado, Licurgo mantém um relacionamento com Ismália. O jovem de ideais republicanos, e em França guerra política com a família que ainda comanda a política de Santa Fé , os Amarais.
Republicano e abolicionista, Licurgo liberta seus escravos e financia o jornal republicano da cidade. Engajado, expansivo e admirado por todos, não lembra o intendente amargurado que se tornará em 11 anos. Lembrem-se é uma trama melancólica.
Vemos o noivado e o caso de Licurgo prosperarem, tudo sob os olhos da senhora do Sobrado e seu confidente.
E finalmente voltamos ao Sobrado de 1895, na sétima parte deste capítulo, o dia raia e os federalistas abandonaram Santa Fé.
Licurgo venceu ao insistir em manter-se dentro de sua casa, recusando-se a render-se. Mas pagou um preço alto, a filha “Aurora”, enterrada no porão da casa que guarda História, Memória, e ressentimento.
A esperança no sentido geral prevaleceu, mas os personagens ao fim ainda estão cercados, o passado, feridas e fraturas ainda os cercam. A intenção de Erico era a de apresentar exatamente uma história fraturada, fragmentada, onde os sussurros de cada fantasma chegam ao presente.
Na próxima #AulaFio, escreverei sobre a segunda parte de O Tempo e o Vento: O Retrato”, publicado em 1951. Espero que voltem e leiam...
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