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Chile, política e futebol: um fio🧶

Santiago, capital do 🇨🇱 e sede da final única da Libertadores, está em chamas. Apesar da Conmebol ainda não admitir, o palco do jogo entre River e Flamengo está ameaçado.

O caos está mais conectado ao futebol do que parece. Puxa o novelo aí:
Ninguém sabe como estará a situação do país no dia 23 de Novembro, data da final, já que os protestos não dão sinais de enfraquecimento. Muito pelo contrário: medidas desastradas do presidente Sebastián Piñera só jogaram gasolina na fogueira da insatisfação social. +
Na pior das suas decisões, o presidente Sebastián Piñera convocou as Forças Armadas para reprimir os protestos, declarando que o Chile estava "em guerra". Com isso, decretou toque de recolher e estado de emergência no país, piorando completamente a situação. +
Sebastián Piñera resgatou uma memória de horror para os chilenos: ao convocar as Forças Armadas à repressão das manifestações sociais, dando espaço para o retorno das práticas de sequestro, tortura e morte que foram a marca de uma das ditaduras mais violenta do continente. +
A Ditadura Militar do Chile, sob o comando do general Augusto Pinochet, durou de 1973 a 1990. Tem início após o golpe, com assassinato de Salvador Allende, presidente eleito do país. Ao longo desses 27 anos de terror, foram 3,5 mil mortos/desaparecidos e cerca 200 mil exilados. +
Piñera sempre se esquivou da ligação com os grupos que foram base de apoio a Pinochet, como os segmentos da elite chilena da qual faz parte desde berço. Há pouco, rebateu comentários entusiasmados de Bolsonaro à ditadura local. Mas... +

Exagero? Em apenas uma semana foram - até onde se sabe - ao menos 5 manifestantes mortos pelas forças militares sob as ordens de Sebástian Piñera. Ontem, eles foram homenageados com uma projeção em um dos edifícios mais altos de Santiago. "Que seus rostos cubram o horizonte". +
Mas, e o futebol? Bom, o Estádio Nacional, sede da final da Libertadores, foi um dos principais centros de detenção e tortura da ditadura de Augusto Pinochet. Em 2015 parte da arquibancada foi fechada para se tornar esse monumento: "Um povo sem memória é um povo sem futuro". +
O chamado irresponsável de Piñera pela repressão militar, e suas consequências graves entre feridos, mortos e sequestrados, provocou um levante ainda maior. Agora pedem a sua renúncia e não pretendem parar tão cedo, mesmo com pedido de desculpas oficial. Avisem à @CONMEBOL. +
Mas a relação futebol/política vai muito além do simbolismo. É histórico e notório como os clubes de futebol do Chile sofreram intervenção dos poderosos de plantão. Seja sob a ditadura Pinochet, seja na fase 'democrática', com Piñera (e governos de centro-esquerda, vale dizer) +
Durante a ditadura, Augusto Pinochet promoveu intervenções diretas em diversos clubes e na própria federação que comanda o futebol no Chile. O diretor dos Carabineros, Eduardo Gordon Cañas, foi nomeado presidente de la Asociación Central de Fútbol (ACF). +
A mais relevante ação de Pinochet foi a intervenção direta no Colo-Colo, clube de maior torcida do país, removendo sua então diretoria. Por que? Porque o favorito nas eleições de 1976 no Cacique era António Labán, apoiado por organizações sociais opositoras ao regime. +
Em seu lugar, Pinochet nomeou o grupo econômico BHC, alegando irregularidades financeiras no Colo-Colo. Tal grupo começou a promover uma ideia que décadas depois voltaria: a transformação dos clubes em sociedades anônimas desportivas. Guarde a informação +
A Fundación de Estudios Económicos BHC, diga-se de passagem, foi uma das principais think thanks da ditadura militar, quando ingressa naquela que seria a grande moda das doutrinas político-econômicas do planeta: o neoliberalismo. O Chile era um laboratório-modelo para a região. +
O BHC era o bunker chileno dos chamados "Chicago Boys", e não à toa o grupo foi chamado de "Los Pirañas". Com o fracasso do projeto, o BHC deixa o comando do Colo-Colo, mas também deixa uma dívida de 70 mi pesos, bem maior do que a encontrada antes. O credor? O próprio BHC. +
Como todo bom gestor munido de atributos técnicos, know-how e tino para gerir o negócio futebol e promover o livre mercado, o grupo BHC é liquidado em 1983, menos de uma década depois de seu ápice. Brilhante. +
Importante também ressaltar o Cobreloa, clube ligado à Codelco, companhia estatal de mineração de cobre, fundamental para a criação dessa imagem de um Chile próspero e estável (sob uma ditadura, claro). Ainda hoje é a empresa que sustenta o país. +
Enquanto a Codelco produzia a riqueza chilena, as reformas neoliberais de Pinochet esgarçavam direitos trabalhistas e poupavam grupos financeiros de compromissos. A desigualdade, a falta de serviços públicos e o alto custo de vida são os pontos centrais das revoltas de 2019 +
Os períodos "democráticos" trouxeram o direito ao voto mas nunca romperam com outra ditadura: a do mercado. Um verdadeiro sistema de privatização dos lucros e socialização dos prejuízos faz do Chile um paraíso para empresários, um inferno para trabalhadores. E o futebol? +
Apenas em 2015 o @CSDColoColo conseguiu excluir Augusto Pinochet da sua lista de presidentes de honra. Mas há uma diferença entre compor a diretoria do clube e do futebol. Porque os clubes no Chile foram privatizados, através da lei das sociedades anônimas. +
Antes de falar disso... Olha o carinho da torcida!

Depois do Brasil, o Chile foi o primeiro país do continente a aprovar uma lei que regulamentava a transformação dos clubes de associações civis sem fins de lucro para sociedades empresariais. A diferença é que a lei chilena, de 2005, tornava essa conversão obrigatória. +
A construção do cenário para a aprovação da Ley de las SADP foi de uma manipulação digna de aplausos da ditadura de Pinochet. Tudo começa no início dos anos 2000, com a revisão do "Decreto con Fuerza de Ley (DFL) 1 de 1970", que regulava a atividade profissional dos jogadores.
Enquanto preparamos a parte final da thread, confira a tese "Sociedades Anónimas Deportivas: El Ocaso del Fútbol Social" de Sebastián Campos Muñoz e Patricio González: bit.ly/2W9Nq3O

Muñoz participou do nosso podcast #30, sobre as SADP no Chile: tiny.cc/ChileSADP
Estamos de volta. Lá vem o resto da história. Segura aí.
O decreto revisto no início dos 2000 tinha a intenção de rever uma liberação feita a uma isenção de tributos sobre a premiação dos clubes aos jogadores. Pelo texto original, estava isento de tudo que fosse acordado entre jogador e clube fora da relação trabalhistas, como bichos +
Com a contestação feita no parlamento, caberia ao Servicio de Impuestos Internos (SII) tributar absolutamente tudo que foi pago fora do salário registrado. Calculou-se tudo o que os clubes deixaram de pagar em impostos de 1970 até 2000. Resultado:
Explicando em miúdos: graças a uma decisão do parlamento o futebol chileno como um todo foi mergulhado em dívidas impossíveis de serem sanadas.

Eis que surge uma solução: vender. Os clubes deviam ser transformados em empresas, transferirem seus ativos para para entes privados.
Após breve debate, em 7 de maio de 2005 é promulgada a lei 20.019, que versa sobre as Sociedades Anónimas Deportivas (SADP). Antes de votada, o projeto perde pontos importantes que asseguravam o controle dos clubes pelos seus sócios e órgãos de fiscalização pela sociedade civil
Francisco Vidal, ministro do Governo à época, reconheceu em 2013: "Nesses tempos houve um lobby transversal para impulsionar a lei. Nos procuraram desde Alberto Espina a Andrés Zaldívar, Jorge Burgos e Sebastián Piñera. Não havia discordância. Queriamos salvar o o futebol"+
Sim, leia de novo. O ex-senador Sebastián Piñera, então presidente do partido Renovación Nacional, estava no grupo de poderosos à frente do projeto.

Há um vídeo dele pedindo aprovação da lei das SADP em 2002:
Meses depois a "Blanco y Negro S.A", empresa que herdou os ativos do Colo-Colo, maior, mais popular e mais vencedor clube do Chile, teve como maior acionista ninguém mais, ninguém menos, que o senador Sebastián Piñera.

Confira comigo no replay:
Sebástian Piñera:

1. Provocou a revisão da lei que endividou os clubes;

2. Impulsionou a lei que obrigava os clubes a se tornar empresas, com o discurso de salvação;

3. Se tornou o dono do Colo-Colo, maior clube do país;
Falta algo?

Sim.

4. Sebastián Piñera era torcedor declarado da Universidade Católica, um dos maiores rivais do Colo-Colo e terceiro maior vencedor do Chile.

5. Com a popularidade do Cacique, arrumou aliados, investiu pesado, foi campeão nacional 4 vezes seguidas e...
6. Foi eleito presidente da República do Chile pela primeira vez em 2009, três anos após a empreitada futebolística.
Como no Chile não existe reeleição, o Renovación Nacional perde a eleição para a presidência em 2013, e ele só volta a ser eleito em 2018. Até aí o futebol chileno tem uma série de resultados dignos de nota.

Com a palavra, novamente, Francisco Vidal:
Vidal: “Impulsionamos a lei para salvar a atividade, mas não resolveu nada. OS clubes hoje devem o dobro de antes e 85% deles estão quebrados".

Deu tudo errado. Mas rendeu a presidência para o principal interessado.
No cenário internacional os clubes chilenos possuem resultados muito piores que os clubes do Paraguai, país bem mais pobre, que não transformou seus clubes empresas.

Esses são os feitos dos clubes desses dois países na Libertadores da América:
Se você tem mais interesse nisso tudo, não deixe de ouvir o nosso podcast sobre o futebol no Chile, que traz isso e muito mais, com a palavra de muita gente que viveu o assunto.

nabancada.online/2019/09/04/sdt…
Mas, atenção:
Pra fechar, vale abrir aspas para Peter Dragicevic, presidente do Colo-Colo quando aconteceu todo esse processo da dívida mágica e da lei das sociedades anônimas que passou o clube para as mãos de Sebastián Piñera:
Dragicevic: "Evidente que dentro das ambições dos grupos econômicos estava a ideia de se apropriar de uma atividade que tinha grande exposição pública, que aparentemente movimentava recursos muito importantes (...)" +
Dragicevic: "A isso se soma todo o glamour e toda magia que produz o futebol como uma atividade popular (...) tampouco estiveram alheias as intenções políticas. Claramente isso estava relacionado com Sebastián Piñera, que tentou aparece como um dos gestores do novo Colo-Colo".
Na foto abaixo Peter Dragicevic posa ao lado de René Orozco, o presidente da Universidade de Chile, arquirrival colocolino na altura da empreitada de Piñera para tomar o futebol do país para seu proveito. Abre aspas para ele também:
Orozco: "Há uma campanha amedrontamento, mas a mim eles não amedrontam. Porque querem mercantilizar o futebol e querem as SADP, e por trás há interesses muito claros. Tem que ser otário demais pra não perceber isso". +
Ministro Francisco Vidal, sobre René Orozco:

"Temos que reconhecer que tinha razão o doutor René Orozco. Foi o único que me disse em La Moneda que estávamos equivocados e que o futebol ia cair nas mãos dos grupos econômicos e de poder vinculados à política".

Fim do fio.
Aliás, fim não, porque os hinchas estão querendo rever a lei e recuperar os clubes deles:

convergenciamedios.cl/2018/05/declar…
Boa noite, @CONMEBOL. Segue uma imagem de Santiago, sede da final única da Libertadores, nesse exato momento.
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