Hoje o dia foi tomado por uma discussão sobre uma suposta manipulação de uma manchete da Folha sobre Flavio Bolsonaro. Aproveito a ocasião para uma reflexão mais ampla sobre autonomia do jornalismo. (segue)
O argumento dos críticos diz que a Folha teria chamado Flavio Bolsonaro apenas de Flavio para esconder os vínculos do escândalo das rachadinhas com a família Bolsonaro. (2)
A manchete, porém, apenas encurtou o nome de Flavio por economia de caracteres ou por vício de linguagem. Não faz o menor sentido supor que queria ajudar o governo, já que a Folha é inimiga declarada do governo. (3)
O argumento de que haveria uma intenção oculta no uso de Flavio, sem o sobrenome, porém, remete a um certo entendimento de como funciona a imprensa que é muito equivocado. (4)
Muitas vezes a esquerda (mas hoje em dia também a direita) sugere que quando um veículo grande faz uma cobertura (por veículo grande entenda Folha, Estado e Globo), ele está fazendo uma intervenção política direta. (5)
Isso se vê em sentenças do tipo: "Os Marinho entraram de vez na briga com Bolsonaro" ao se referir a alguma matéria crítica no Jornal Nacional. Esse modo de pensar supõe que a pauta de um veículo não tem nenhum critério jornalístico e é apenas intervenção política/ editorial. (6)
Não é assim que funciona uma redação. Num veículo grande sério, uma pauta importante, com bons indícios, não é desprezada porque o dono não gosta. É por isso que quase sempre que alguém diz: "Isso a mídia não mostra", a gente faz uma pesquisa e a imprensa mostrou. (7)
Isso, claro, não quer dizer que a cobertura da imprensa é "isenta" – ainda que seja muito diferente perseguir o equilíbrio e fazer um jornalismo com lado. Basta comparar a Fox News com a BBC. (8)
Embora seja considerado falta de profissionalismo grosseiro ignorar uma "boa" pauta por viés editorial, é razoavelmente tolerado que o editor exerça o discernimento de enterrar uma boa pauta numa notinha e destacar uma bobagem semi-apurada na capa. (9)
Um editor que pesa a mão também pode exigir um nível mais elevado de apuração para uma matéria incômoda e publicar com agilidade uma matéria frágil que seja politicamente conveniente. (10)
Mas se essa prerrogativa é abusada, a coisa gera mal-estar no meio. Manipulação grosseira, como o JN fez nas eleições de 1989 então é um verdadeiro escândalo. Esquerda e direita pegam esses momentos escandalosos e excepcionais e apresentam como se fosse rotina. Não é. (11)
A crítica de esquerda e de direita que deveria cobrar da imprensa quando erra que seguisse seu alegado padrão de equilíbrio, prefere tratar como se neste erro tivesse sido revelada a essência do jornalismo. E ainda o copia. (12)
Assim, para se contrapor a essa imprensa imaginada, que é pura intervenção política, esquerda e direita criam sites hiperpartidários que são uma caricatura positivada dos erros da grande imprensa: não apuram e apresentam enquadramento ideológico como se fosse reportagem. (13)
Precisamos exigir que a imprensa seja melhor e não pior. Que a cobertura de um tema importante como a da reforma da Previdência sempre contenha aspas de um crítico e não apenas a de um analista de mercado. (14)
É triste ver um ativista político dizer com orgulho que não lê jornal. Se não lê jornal, não sabe dos fatos e se não sabe dos fatos, como é que forma o juízo? Apenas com ideologia? Isso empobrece e subtrai a base fatual do debate político.
