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1. Curiosidades sobre a Justiça e Direito europeu entre os séculos IX e XII e uma surpresa (para muitos) sobre quem o foi modificando.

"Até ao século XII, o «direito penal» da Europa era predominantemente privado. Os funcionários públicos não procuravam nem investigavam crimes.
2. "As ofensas eram levadas ao conhecimento dos funcionários da justiça por aqueles que as haviam sofrido e era da responsabilidade do acusador fazer com que os funcionários judiciais atuassem. A acusação de um indivíduo por outro era, como diziam os juristas, o «recurso
3. "habitual» para aquilo a que, desde o século XII, designamos por «crime». Como ambas as partes possuíam a condição de homens livres, o litígio entre elas era estritamente limitado de acordo com a inviolabilidade da pessoa de um homem livre. O acusador escolhia o tribunal
4. "apropriado (um que tivesse jurisdição sobre ambas as partes), fazia a sua acusação, jurava que estava a dizer a verdade e chamava a outra parte para responder em tribunal. O réu, após tomar conhecimento da acusação, necessitava normalmente apenas de jurar que a acusação
5. "era falsa. Podia então acontecer que o tribunal considerasse que o juramento do réu não era em si suficiente para se poder tomar uma decisão e que, para além do juramento do réu, exigisse apoiantes de juramento, compurgadores. Estes não eram testemunhas do acontecimento,
6. "mas apenas pessoas que se prontificavam a apoiar o réu, afirmando a sua aceitação do juramento daquele.
Se o número de compurgadores fosse suficiente, a acusação era considerada improcedente e o caso ficava encerrado. O juramento era a «prova» mais forte que um réu podia
7. "apresentar e, na maior parte das acusações, era motivo mais do que suficiente para fazer terminar um litígio.
.Em alguns casos, especialmente contra homens cuja reputação era má, algumas acusações, principalmente as de crimes capitais, podiam implicar a sujeição do réu
8. "ao ordálio, processo em que era invocado o julgamento de Deus para solucionar um problema em que as restrições do processo jurídico humano tornavam irresolúvel. Por fim, em certos casos, as duas partes, ou partes por elas designadas, podiam envolver-se num combate judiciário,
9. "que era também considerado uma forma de ordálio, com a justificação de que Deus permitiria apenas a vitória da parte que estivesse dentro da razão. O juramento, o ordálio e o combate judiciário constituíram os métodos de prova «irracionais, primitivos, bárbaros» até meados
10. "do século XII. Por muito arcaicos e insuficientes que viessem a parecer mais tarde, satisfaziam adequadamente as premissas fundamentais da condição do homem livre e as restrições de processo que esta impunha aos tribunais. Refletiam também a consciência daquilo a que alguns
11. "historiadores chamaram «justiça imanente» durante esse período: a suposição de que a intervenção divina no mundo material era de tal modo contínua que não permitia que os crimes ficassem impunes, chegando até ao ponto de os atribuir automaticamente a presumíveis
12. "transgressores.
As pessoas aceitavam as decisões do ordálio, do julgamento e do combate judiciário porque acreditavam que eram sentenças de Deus, bem como práticas antigas e reconhecidas.
A partir do século IX, estes métodos tornaram-se igualmente parte da vida litúrgica
13. "da sociedade europeia. Os rituais eclesiásticos para a aplicação do juramento e do ordálio surgiam com regularidade e o clero participava neles — provavelmente mais por não poder negar a ideia de justiça imanente do que pela antiguidade e utilização generalizada
14. "dessas práticas. Mesmo nas regiões onde sobreviveram alguns vestígios do método romano, especialmente na Lombardia, pouca frente se lhes fez antes do século XII, embora a responsabilidade do réu de fornecer provas fosse por vezes modificada para permitir ao queixoso fazer
15. "o mesmo, e os ordálios parecem ter sido utilizados com menor frequência; no entanto, o sistema dos julgamentos de Deus manteve-se em uso universal por toda a Europa.
Em certos tribunais, principalmente nos eclesiásticos, eram ainda visíveis alguns vestígios do antigo
16. "procedimento romano. A forma de processo conhecida por inquisito — o início de uma ação por um funcionário, a recolha de provas do facto e de depoimentos de testemunhas e a sentença proferida pelo juiz encarregue da investigação era utilizada num número limitado de casos.
17. "Carlos Magno utilizou este processo, mas não em larga escala, e o sistema de procedimento e de jurisdição foi-se afastando da inquisito entre os séculos IX e XII."

Edward Peters
18. É interessante como funcionava a Justiça e o Direito nos séculos finais do primeiro milênio e iniciais do segundo da Era Cristã. Tinha-se algum direito inquisitório (que lembra o de hoje) — especialmente no Sacro Império Romano.
19. Essas características vão sumindo e virando um processo acusatório e de caráter predominantemente privado (a parte acusadora era um Ministério Público), em que o acusado que tinha que provar inocência e apresentar provas perante a autoridade judicial.
20. As provas eram baseadas na palavra de ambas as partes, centradas no acusado e suas testemunhas, e tendo uma consciência geral no julgamento de Deus com pairando sobre todos e que, no fim, conferiria Justiça.
21. E é através da separação dos tribunais eclesiásticos (Igreja) dos tribunais civis ou laicos (braço estatal) para os julgamentos de crime de heresia, que o processo judicial foi se aprimorando e se tornando o que temos hoje.
22. É com os tribunais da Inquisição onde se inicia o surgimento rudimentar de inúmeras garantias, como a do ônus é para quem acusa, a do interrogatório investigativo antes, a do devido processo legal, e a da ampla defesa.
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