Você é médico, analisou exames hoje e não se perguntou “será que eles são verdadeiros”?

Ou é paciente, e acredita em todo e qualquer exame que recebe?

Então, vamos ver o que ocorre no caso da Dona Joana, paciente hipotética mas com um caso muito rotineiro: ela desmaiou.
Dona Joana é diabética e controla bem com um remédio. Começou a se sentir mal no salão de beleza (náuseas, suor frio, até mesmo vomitou) e desmaiou em seguida. Acordou no hospital, com todas suas funções preservadas.

No hospital, lhe pediram vários exames, entre eles troponina.
A troponina é um exame que tem poder de desencadear uma cascata de eventos que culmina no implante do stent.

Na investigação da síncope, a troponina tem papel limitado, porque pode confundir os menos experientes. Também é limitado o USG de carótidas (assunto pra outra thread).
A troponina foi positiva. O médico não pensou que a troponina teria 93% de chance de falsos positivos nesse caso. Ele apenas assumiu que o exame era verdadeiro e só.

Dona Joana entrou na tal cascata que culminou em seu stent e recebeu alta com dois remédios que afinam o sangue.
O caso da Dona Joana servirá, para sempre, para o médico que lhe atendeu como exemplo para as seguintes máximas:
- Diabético infarta sem dor;
- Eu já atendi um infarto que se apresentou como desmaio, e não como dor torácica.

Quando ler o contrário, ele recusará o contraditório.
O caso da Dona Joana servirá para ela e para a família, para sempre, como bom exemplo de como “ainda bem que o doutor descobriu que eu estava infartando mesmo sem dor”.

A gratidão ao colega que cometeu o erro estará viva mesmo quando a Dona Joana voltar a desmaiar…
E Dona Joana voltou a desmaiar (afinal, seu diagnóstico foi falso). Só que dessa vez, seu crânio bateu no chão e suas plaquetas estavam duplamente anti-agregadas, o que lhe causou uma hemorragia intracraniana.

Ela e família pensam “ainda bem. Pelo menos sobrevivi ao infarto”
Para escapar disso:

- Sendo médico, tendo humildade de reconhecer que diagnósticos falsos existem; e estudando bastante para ter esse poder.
- Esqueça as máximas e se abra mais ao contraditório.
- Perceba que seus relatos pessoais podem estar enviesados, como exemplifiquei.
Sendo paciente:

- Pergunte ao médico “qual a chance desse resultado ser falso?” em vez da vigente cultura de “quanto mais exames melhor”.
- Entenda que um exame + pode ser falso e isso é ruim porque a verdadeira doença está lá ou porque você receberá um tratamento desnecessário
PS: 93% de chance de falsos positivos da troponina vem da probabilidade pré-teste de 1% de uma síncope ser por isquemia aguda (ainda fui benevolente).

Não responda a essa thread dizendo que a sensibilidade da troponina é > 7%. Eu estou falando da razão de verossimilhança.

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26 Sep
Flutter atrial. Um fato e quatro mitos (o último é surpreendente)

É uma arritmia em que uma frente de onda se perpetua pelo átrio direito a uma velocidade de 300 rpm.
O nó AV não aceita isso, deixando passar 1 a cada 2 ondas.

Fato: arritmias de 150 bpm tem que pensar em flutter
Mito 1: se o ritmo for irregular, não pode ser flutter, tem que ser FA.

O flutter pode ser irregular. Para que isso ocorra, basta que o nó AV aceite irregularmente essas tais frentes de onda: às vezes 1 a cada 2, outras vezes 1 a cada 3…
É exatamente o que ocorre nesse ECG: Image
Mito 2: Se houver alguma linha isoelétrica (reta) entre os batimentos, é taquicardia atrial e não flutter.

Primeiro que flutter é uma taquicardia atrial. Segundo que são ESPERADAS linhas isoelétricas nas precordiais.
Observe o dente de serra em D2/D3/aVF, mas linhas retas em V1. Image
Read 8 tweets
20 Sep
Jeff Holter (1914-1983) se alistou na 2ª Guerra como médico do Escritório da Marinha Americana. Estudando eletroencefalogramas, acabou criando o Holter que você conhece, mas que era bem diferente naquela época.

Hoje, contamos com os Smart Watches. Segue o fio 🧵 Image
O primeiro ECG ambulatorial da história veio da incapacidade de Holter de capturar ondas eletroencefalográficas, pelo intenso ruído. Holter mudou o local dos eletrodos para o tórax e conseguiu capturar a atividade elétrica cardíaca.

O primeiro Holter (foto de 1947) tinha 38 kg.
O Holter clássico dura 1-2 dias. Patches e loopers podem monitorizar o eletrocardiograma por até 30 dias. O monitor de eventos implantável (ILR, como o Lux, da foto, que tem 4,5 cm de comprimento e bateria estimada de 3 anos).

A pequena cirurgia pra implante dura segundos. Image
Read 14 tweets
17 Sep
Em 1966 a Inglaterra ganhava a sua única Copa do Mundo. Batman e Star Trek estreavam na televisão. Na França, as pessoas ainda iam à guilhotina (a última foi em 1977)

Na França foi descrito um temido ritmo cardíaco. Dessertenne deu-lhe um nome em seu idioma: Torsades de Pointes.
Dessertenne descreveu esse ritmo em uma senhora de 80 anos em seu artigo “La tachycardie ventriculaire à deux foyers opposes variables” na Arch Mal Coeur.

O traçado desse artigo está em meu livro, no capítulo “Arritmias Ventriculares”. Image
Ao bater o martelo sobre o nome, Dessertenne usou um dicionário* que acabara de ganhar como presente da sua esposa.
Lá, ele viu três definições para “Torsades”.

* Livro que os antigos usavam para saber o significado e a ortografia de palavras.
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13 Sep
Continuando a série de posts sobre as influências do Sistema Nervoso Autônomo (SNA, aquele que funciona sem nosso comando) no coração, agora vem fio sobre:

As manobras vagais - por que existem e qual o jeito correto de “enganar” o SNA pra quebrar o circuito de uma arritmia? 🧵
A maioria das arritmias supraventriculares (TPSV) depende do nó AV para perpetuação do seu circuito. O nó AV é ricamente inervado por fibras do SNA (tanto simpático, que acelera sua ativação e aumenta frequência cardíaca; quanto parassimpático, que faz o inverso).
Como não comandamos o SNA, não podemos fechar o olho e pensar “nó AV, fique mais lento”, como fazemos quando queremos mexer nossa perna. Não. Eu, no máximo, posso enganar o SNA para que ele receba mais estímulos parassimpáticos, o que reduziria frequência e quebraria a arritmia.
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11 Sep
Você já aprendeu que aquele mal-estar ao ver sangue ou a outros gatilhos é o reflexo vaso-vagal (RVV), um resquício evolucionário de animais que reagem a perigos fingindo-se de morto.

Se esse reflexo não for interrompido, uma pessoa pode desmaiar.
Como interromper o reflexo?🧵
Só pra explicar pra quem perdeu o fio anterior:
- RVV é quando, pela ação exagerada do sistema nervoso parassimpático (SNP), a pressão arterial (PA) e/ou a frequência cardíaca (FC) caem.
- É uma estratégia de sobrevivência diferente da clássica “luta e fuga”.
É diferente da clássica “luta e fuga” porque:
- Na RVV, o animal tende a ficar imóvel, parado e caído
- Com poucas respirações e pulso fraco, simula melhor alguém que está morto
- Deitado, perfunde muito bem seus órgãos, pra que tenha explosão ao levantar-se e finalmente fugir
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10 Sep
Vê sangue e começa a passar mal?

Isso se chama reflexo vaso-vagal (RVV) e tudo indica que se trata de um resquício evolucionário.

Vamos entender?
RVV é um momento em que o corpo, ao ser confrontado por um estresse (ou por ortostase prolongada - ficar em pé), desiste do clássico mecanismo de “luta e fuga”, que seria um forte estímulo do sistema nervoso simpático (SNS) que aumenta a velocidade e força do coração.
A resposta de “luta e fuga” é um mecanismo evolucionário importante. Quando expostos a uma ameaça, os animais (inclusive nós) se beneficiam dessas rápidas alterações para sua sobrevivência.

Só que nem todo animal (e ser humano) responde da mesma forma.
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