A Aspirina não reduz em 100% a mortalidade do Infarto. Na Medicina, não existe medicamento assim.
No ISIS-2, a Aspirina reduziu a mortalidade de 11.8% a 9.4%.
O que significa “sobrevivem porque já iriam”?
A mortalidade do infarto não é e nunca foi de 100%. Mesmo sem tratamento algum (até a década de 50), a mortalidade era de 35-45%. O que significa que até 65% das pessoas sobrevivem porque já iriam.
No ISIS-2, 88% sobreviveu sem AAS.
“Sobreviver porque já iria” é o que conhecemos como “História natural da doença”.
A história natural do COVID, por exemplo, é que 99% dos doentes sobrevivem. Se uma pessoa tomou um remédio e sobreviveu, ele pode ser 1 desses 99% que já iriam sobreviver.
O que significa “sobrevivem por outros fatores”?
Há outras terapias/estratégias que reduzem mortalidade em infartos, a saber:
- Unidades coronárias
- Fibrinolíticos, angioplastia
- Heparina, inibidores da P2Y12…
Na época do ISIS, por exemplo, já existiam as Unidades Coronárias. Então muitos pacientes sobreviveram por conta dessa estratégia.
-“Medicina é a arte da probabilidade” - acostumemos-nos a isso;
- Devemos ter humildade clínica para não cair em conclusões simplistas dos tipos:
* “Tomei cloroquina e no outro dia estava curado”
* “Não pode ser TEP, porque ele usa marevan”
Quais os vieses do NNT?
- Viés de qualquer dado estatístico: pode ser manipulado.
Exemplo: alguém faz uma metanálise usando apenas os artigos que lhe convém, manipula desfechos, mistura laranjas e maçãs, e obtém um NNT, esse NNT será falso. Por mais que seja metanálise.
- Uma droga não possui um só NNT. Ela possui um NNT em cada estudo, em cada cenário em uma população estudada para aquele desfecho e naquele período.
Exemplo: o AAS tem NNT de 42 no ISIS-2 pra evitar morte em pacientes com infarto com supra em 5 semanas, comparado com placebo.
De modo que possivelmente alguém trará outro NNT para a Aspirina nos comentários. E ele estará individualmente correto porque essa escolha é subjetiva.
A escolha do NNT de 42 (e não de outro) pra esse post foi porque EU considero o ISIS-2 a melhor evidência que existe sobre isso
O NNT nos informa (como um choque de realidade) qual o real impacto das nossas atitudes sobre as doenças.
No caso do AAS, mostrando que a maioria dos pacientes já sobreviveria sem nós.
Mas devemos melhorar: em 60 anos, reduzimos em 90% o risco relativo de morte.
Pra finalizar, cada medicamento possui também o NNH (number needed to harm), que é uma medida de quantos pacientes sofrem eventos adversos pelo medicamento.
- Se o NNH for < NNT
- ou o evento adverso for muito grave em comparação com o benefício;
A droga não deve ser prescrita.
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Desde os conceitos de “sensibilidade e especificidade” até a análise do valor de p em pesquisas. Todos são interpretados de maneira determinista pela maioria.
Não somos ensinados a seguir o raciocínio bayesiano. Segue mais esse fio.
Ainda na graduação, somos introduzidos aos conceitos de “sensibilidade” e “especificidade”.
- Sensibilidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros positivos entre os doentes.
- Especificidade: capacidade de um teste de dar verdadeiros negativos entre quem não tem a doença.
Imagine uma doença com 70% de sensibilidade (30% de falsos negativos entre quem tem a doença).
Se uma pessoa faz o teste e ele é negativo, existe 30% de chance de ser falso?
Resposta: NÃO. Perceba que troquei a palavra “doente” por “pessoa”. É aí que mora o bayesianismo.
Você é médico, analisou exames hoje e não se perguntou “será que eles são verdadeiros”?
Ou é paciente, e acredita em todo e qualquer exame que recebe?
Então, vamos ver o que ocorre no caso da Dona Joana, paciente hipotética mas com um caso muito rotineiro: ela desmaiou.
Dona Joana é diabética e controla bem com um remédio. Começou a se sentir mal no salão de beleza (náuseas, suor frio, até mesmo vomitou) e desmaiou em seguida. Acordou no hospital, com todas suas funções preservadas.
No hospital, lhe pediram vários exames, entre eles troponina.
A troponina é um exame que tem poder de desencadear uma cascata de eventos que culmina no implante do stent.
Na investigação da síncope, a troponina tem papel limitado, porque pode confundir os menos experientes. Também é limitado o USG de carótidas (assunto pra outra thread).
Flutter atrial. Um fato e quatro mitos (o último é surpreendente)
É uma arritmia em que uma frente de onda se perpetua pelo átrio direito a uma velocidade de 300 rpm.
O nó AV não aceita isso, deixando passar 1 a cada 2 ondas.
Fato: arritmias de 150 bpm tem que pensar em flutter
Mito 1: se o ritmo for irregular, não pode ser flutter, tem que ser FA.
O flutter pode ser irregular. Para que isso ocorra, basta que o nó AV aceite irregularmente essas tais frentes de onda: às vezes 1 a cada 2, outras vezes 1 a cada 3…
É exatamente o que ocorre nesse ECG:
Mito 2: Se houver alguma linha isoelétrica (reta) entre os batimentos, é taquicardia atrial e não flutter.
Primeiro que flutter é uma taquicardia atrial. Segundo que são ESPERADAS linhas isoelétricas nas precordiais.
Observe o dente de serra em D2/D3/aVF, mas linhas retas em V1.
Jeff Holter (1914-1983) se alistou na 2ª Guerra como médico do Escritório da Marinha Americana. Estudando eletroencefalogramas, acabou criando o Holter que você conhece, mas que era bem diferente naquela época.
Hoje, contamos com os Smart Watches. Segue o fio 🧵
O primeiro ECG ambulatorial da história veio da incapacidade de Holter de capturar ondas eletroencefalográficas, pelo intenso ruído. Holter mudou o local dos eletrodos para o tórax e conseguiu capturar a atividade elétrica cardíaca.
O primeiro Holter (foto de 1947) tinha 38 kg.
O Holter clássico dura 1-2 dias. Patches e loopers podem monitorizar o eletrocardiograma por até 30 dias. O monitor de eventos implantável (ILR, como o Lux, da foto, que tem 4,5 cm de comprimento e bateria estimada de 3 anos).
Em 1966 a Inglaterra ganhava a sua única Copa do Mundo. Batman e Star Trek estreavam na televisão. Na França, as pessoas ainda iam à guilhotina (a última foi em 1977)
Na França foi descrito um temido ritmo cardíaco. Dessertenne deu-lhe um nome em seu idioma: Torsades de Pointes.
Dessertenne descreveu esse ritmo em uma senhora de 80 anos em seu artigo “La tachycardie ventriculaire à deux foyers opposes variables” na Arch Mal Coeur.
O traçado desse artigo está em meu livro, no capítulo “Arritmias Ventriculares”.
Ao bater o martelo sobre o nome, Dessertenne usou um dicionário* que acabara de ganhar como presente da sua esposa.
Lá, ele viu três definições para “Torsades”.
* Livro que os antigos usavam para saber o significado e a ortografia de palavras.
Continuando a série de posts sobre as influências do Sistema Nervoso Autônomo (SNA, aquele que funciona sem nosso comando) no coração, agora vem fio sobre:
As manobras vagais - por que existem e qual o jeito correto de “enganar” o SNA pra quebrar o circuito de uma arritmia? 🧵
A maioria das arritmias supraventriculares (TPSV) depende do nó AV para perpetuação do seu circuito. O nó AV é ricamente inervado por fibras do SNA (tanto simpático, que acelera sua ativação e aumenta frequência cardíaca; quanto parassimpático, que faz o inverso).
Como não comandamos o SNA, não podemos fechar o olho e pensar “nó AV, fique mais lento”, como fazemos quando queremos mexer nossa perna. Não. Eu, no máximo, posso enganar o SNA para que ele receba mais estímulos parassimpáticos, o que reduziria frequência e quebraria a arritmia.