Téo Benjamin Profile picture
27 Oct, 36 tweets, 11 min read
O Flamengo errou duas vezes na saída de bola, acabou cedendo dois gols ao Inter e despertou mais uma vez o debate sobre a saída de bola no futebol brasileiro.

Há quem ame, há quem odeie, mas minha sincera impressão é que daí nasce um debate que precisa ainda ser aprofundado.
Esse tipo de situação, a bola roubada lá na frente que gera perigo, não é novidade para o torcedor rubro-negro. A diferença é que nos acostumamos a ver o Flamengo do outro lado, sendo o time que faz a pressão e força o jogo a entrar em um ciclo perene.

Em 2019, isso era comum. Em 2020, o Flamengo se impôs contra o Corinthians, na semana passada, pressionando bastante no campo de ataque. Com um pós-perda muito organizado, o time parecia um enxame de abelhas. Apertava, recuperava e seguia atacando.

Mas, dessa vez, foi o rubro-negro que sofreu bastante. A marcação-pressão muito organizada e intensa do Inter definiu o ritmo do primeiro tempo. Foram várias roubadas no ataque.

Em duas delas, os gols. (em uma outra, o gol anulado)

É óbvio que os gols saíram por erros individuais e coletivos na saída de bola. GH e Isla foram muito mal.

É preciso reconhecer, ao mesmo tempo, o mérito da marcação-pressão do Inter que induz esse tipo de erro mais do que estamos acostumados a ver.

Dá para dissecar as jogadas, entender os erros e adaptar as estratégias. Há muitos detalhes.

O que me interessa neste texto, porém, é encarar a conclusão geral que parece ter surgido: “não dá pra sair jogando. Tem que bicar pra frente sempre”

A meu ver, um papo muito raso…
Primeiro porque os grandes times do mundo gostam de sair jogando por baixo há muito tempo. Tem sido uma característica cada vez mais importante. A gente pode até não gostar, mas é inegável que existe um padrão aí.

Segundo por uma escolha existencial. Se todo mundo quebrar a bola sempre, a gente nunca mais vai ver certos golaços que rodam o mundo e mexem com o nosso imaginário. Eu não sei vocês, mas pessoalmente eu prefiro viver em um mundo onde isso aqui acontece.

Ou alguém em sã consciência prefere assistir esse estilo de futebol?

(Inclusive, em um futebol global, em que a exposição constante do produto garante engajamento, mídia, contratos de patrocínio, dinheiro e investimento, jogar um futebol interessante não é apenas adereço, mas uma escolha de modelo de negócios.)

Mas nem precisamos ir tão longe. Nem precisamos pensar nas finanças, nos olhares globais ou nos gols mágicos que saem de vez em nunca. Precisamos falar sobre a eficiência de sair jogando e como isso contribui para o time.

Principalmente, precisamos falar sobre os porquês.
Afinal de contas, não dá pra reclamar, pedindo para que o time saia bicando toda vez que erra por baixo, mas exaltar toda vez que acerta.

Não dá pra “comer o bolo e guardar o bolo”. Isso é oportunismo.

É uma escolha. Por que, então, esses times insistem em sair assim?
Antes de mais nada, para progredir de maneira mais controlada, desorganizar o adversário, atrair e gerar espaço. Os gols do Inter foram consequência das saídas erradas do Fla, mas TODAS as chances do Fla no jogo aconteceram pela saída paciente lá de trás.

É verdade que essas saídas começaram a fluir mais no segundo tempo, quando o Inter cansou, se sentiu pressionado e recuou demais.

Mesmo assim, é importante entender a importância da saída, do primeiro passe lá de trás para criar lá na frente.
Você pode até dizer que faz sentido sair assim quando o adversário não pressiona, sem risco. Mas, além de ser uma estratégia fácil de anular (é só eu pressionar para você sempre quebrar), nenhuma escolha em um campo de futebol garante segurança total.
Mesmo sob pressão, dar o chutão pode não ser tão seguro quanto se imagina.

Afinal, tudo que vai, volta. E quanto mais rápido vai, mais rápido costuma voltar.

A ideia vai muito além do Flamengo ou dos gigantes da Europa.

Veja o exemplo do São Paulo, tão conhecido e tão criticado por sua saída curta

Na semana do clássico contra o Corinthians, Diniz teve que dizer que “abriria mão da filosofia para vencer”
Como se a filosofia não fosse construída justamente para se aproximar da vitória… Como se fosse um acessório.

Contra o Corinthians, conhecido por um jogo “feio”, vejamos o que aconteceu...

Quem saiu por baixo, criou. Quem deu bicão...

Sair jogando de pé em pé não é novidade no futebol mundial e muito menos no Brasil. Não é uma “invenção moderna”.
Mesmo quando ainda era permitido recuar para o goleiro, laterais e zagueiros brasileiros muitas vezes sabiam jogar o fino da bola.

Mas o jogo realmente mudou. Cada vez mais times fazem marcação-pressão e há muito mais capacidade física. Os times precisaram aprender a sair jogando com mais velocidade e precisão.

Não é a toa que a “era do pressing” surgiu após a “era da posse”.

A tendência de sair jogando por baixo tem sido tão importante na última década que até motivou uma mudança fundamental na regra: tiros de meta agora podem ser cobrados para dentro da área.

Alguém acha que essa proposta surgiu do nada?

Nesse contexto, é muito importante saber variar as estratégias, se adaptar às circunstâncias. O PSG, por exemplo, cobra quase metade dos tiros de meta para dentro da própria área. A outra metade cruza o meio-campo.
Assim, variando entre jogadas longas e curtas, o time consegue manter o adversário desconfortável: se não sair para pressionar, dá muito espaço para a construção. Se sair demais, pode tomar o lançamento nas costas.
Tom Worville mostra em um pequeno estudo () que tiros de meta curtos, de fato, geram mais finalizações para o adversário do que tiros de meta longos.

Mas também geram muito mais finalizações a favor! Construir por baixo é melhor e mais eficiente!
A gente precisa entender que sair jogando de pé em pé não é uma escolha estética. Tem raciocínio, tem intenção, tem motivo. Alguns modelos de jogo priorizam isso porque é a maneira que acreditam ser mais eficiente de abrir os adversários.

É obviamente um risco. Mas é um risco calculado. O objetivo é evoluir no campo. A chance de perder a bola existe, mas SEMPRE existe.

É ÓBVIO que zagueiros têm que avaliar o risco e, às vezes, abrir mão do plano inicial.

O chutão faz parte do futebol como faz parte da vida.
Aí entra a forma como consumimos o futebol. Ontem, assisti o jogo do Flamengo ao lado de um amigo.

A TV foi mostrar os gols do Palmeiras e, assim que essa imagem apareceu na tela, antes mesmo do passe de Jean, meu amigo deu um grito: “Meu Deus! Não acredito!”
Afinal, se você está assistindo os gols da partida e aparece um goleiro com a bola no pé, você só tem uma certeza: isso aí vai dar errado.

E isso gruda na memória.
O primeiro gol do Flamengo contra o Goiás, por exemplo, saiu de um tiro de meta longo de Tadeu. Mas isso não aparece nos melhores momentos. Isso ninguém lembra. Aliás, ninguém faz questão de lembrar.

Precisamos entender, então, dois vieses cognitivos importantes.

O primeiro é a Heurística da disponibilidade (pt.wikipedia.org/wiki/Heur%C3%A…): pessoas predizem a frequência de um evento baseadas no quão fácil conseguem lembrar de um exemplo.
O segundo é o Viés de confirmação (pt.wikipedia.org/wiki/Vi%C3%A9s…): pessoas prestam mais atenção em exemplos e informações que confirmam as crenças que já têm.

Ou seja, fumantes tendem a ver mais pesquisas que dizem que cigarro não faz mal, e não o contrário.
Todos nós somos reféns desses vieses. Nossos cérebros funcionam assim. Mas esse é só o estímulo inicial. Temos a capacidade de ir além, interpretar dados, prestar atenção em situações que divergem daquilo que acreditamos… Precisamos fazer esse esforço coletivo.
Não adianta reaquecer esse debate toda vez que algum time erra a saída de bola, mostrando um milhão de vezes o mesmo lance, construindo e reforçando essa memória coletiva.
Futebol não tem resposta certa. É um jogo de cobertor curto: em cada escolha se ganha uma coisa e se perde outra.

Cada treinador tem as suas preferências. Alguns são mais ousados, outros menos. Alguns são mais radicais, outros menos...
Quem está fora do jogo pode ter suas preferências também, claro, mas acredito que quem se propõe a analisar deve parar de olhar o jogo a partir dos seus conceitos individuais para mergulhar nos conceitos que realmente importam: o que os times fazem em campo e PORQUE fazem.
A gente pode gostar da saída curta ou preferir o "jogo direto" com bola longa. Com certeza podemos ficar revoltados com o zagueiro que erra perto do próprio gol.

Mas dizer que é a ideia é absurda e querer transformar o futebol brasileiro na terra do bicão? Aí fica difícil...

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Téo Benjamin

Téo Benjamin Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @teofb

26 Oct
Assim que Domenec Torrent colocou a caneta no papel e assinou com o Flamengo, temi que um possível debate sobre o tal jogo de posição ficasse totalmente perdido.

Tentei, por isso, dar a minha singela contribuição lá atrás.

Um dos pontos importantes, inclusive, é esse: os analistas parecem ser mais dogmáticos que os próprios treinadores.

Domenec adapta suas ideias? Sim.
Isso é surpreendente? Claro que não.
Uma das características de quem quer trabalhar em alto nível é saber se adaptar.
Portanto, é muito estranha essa noção de que às vezes (normalmente quando dá errado), ele "manteve suas convicções" e em outras vezes (quando dá certo), ele "abriu mão do que acredita".

As falas do próprio Domenec antes de chegar ao Fla indicavam um caminho de adaptação...
Read 7 tweets
19 Oct
Vale no resultado ruim e vale no bom também.

Com o time praticamente titular, gramado excelente, alguns jogadores mais descansados e opções no banco, o contexto um pouco mais favorável fez o Flamengo nadar de braçada contra o Corinthians.

Há muito o que falar sobre a goleada de hoje... Quando tiver um tempinho, vou escrever aqui.

Quem tiver mais pressa, pode conferir a análise bem detalhada em tempo real lá no Telegram (t.me/teofb7)
Só alguns comentários rápidos sobre alguns indivíduos...

Vitinho foi a maior surpresa na escalação e o maior destaque. Deixo aqui uma página do capítulo "Flamengo 3x1 Atlético-MG" do meu livro, Outro Patamar
Read 7 tweets
17 Oct
Nenhum rubro-negro ficou feliz com o empate contra o Red Bull Bragantino. Dentro de um contexto surreal, os três pontos e a liderança provisória seriam importantes para a sequência que vem a seguir...
Desde a viagem para o Equador, há exatamente um mês, o rubro-negro não teve um dia de paz. O surto de coronavírus, uma série de lesões, uma sequência insana de jogos, convocações...

Em uma temporada já atípica, o Flamengo viveu um mês de pandemônio.
Neste mês, o Flamengo conseguiu seis vitórias e dois empates. Resultado exemplar, até acima do esperado com tantos problemas.

Mesmo assim, não dá para deixar os resultados mascararem o desempenho: o time teve maus momentos em todos os jogos e mostrou que ainda precisa evoluir.
Read 28 tweets
15 Oct
Ufa! O Flamengo sofreu, mas conseguiu vencer o Goiás no último lance.

Ou melhor… O Flamengo criou, martelou, mas a bola cismou de não entrar até o último lance. Assim é o futebol. O sofrimento foi mais pelo resultado (até o fim) do que pela performance em si.

Vamos à análise!
Antes do apito inicial, havia uma dúvida sobre qual seria o time, uma vez que o Fla está no meio de uma agenda insana. Domenec teve que fazer um exercício de escalação condicional: o time e as substituições planejadas na terça dependiam também do planejamento para quinta.
Isso porque, segundo o próprio Domenec, o pico de desgaste dos jogadores se dá 48h após a partida. Ou seja, provavelmente ele não pensa em repetir (quase) ninguém nos dois jogos.

Talvez contando com a volta dos convocados para quinta, colocou o que tinha de melhor no momento.
Read 26 tweets
13 Oct
“Clássico não se joga, se vence.”

Há quem acredite, há quem discorde. Fato é que o Flamengo foi lá e venceu, mesmo sem jogar. Aliás, mesmo em um jogo pouco jogado. Uma exibição fraca e cheia de erros, mas suficiente para garantir três pontos importantíssimos.
Mas clássico se joga? Se vence? O excelente @csguimaraes escreveu na semana passada sobre essa frase. O texto é sobre o Gre-Nal, mas vale para Flamengo x Vasco também.

Ele conclui que, de fato, clássico se vive, não apenas se analisa. não basta apenas jogar bem. E eu concordo absolutamente.

Preciso, porém, fazer uma ressalva...

Read 26 tweets
10 Oct
Flamengo e Vasco vivem trajetórias inversas no campeonato. Um começou oscilando e vem se afirmando, o outro começou voando e vem caindo. Na verdade, ambos começam a gravitar suas posições "naturais" na tabela.

Não é surpresa para quem vinha prestando atenção nos números…
Logo no início do campeonato, um assunto começou a chamar a atenção: a falta de pontaria do Flamengo vinha incomodando. Mergulhei profundamente no tema para entender onde estava o problema.

De fato, o Flamengo ainda não era completamente dominante (como ainda não é) nos jogos, mas já era um time que ficava bom a bola, conseguia progredir razoavelmente, criava chances, finalizava... A bola simplesmente não entrava. Faltava o toque final.

Read 23 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!

Follow Us on Twitter!