Fiozin de domingo: Que o Jair é péssimo aluno de História, não é surpresa. Mas essa versão de uma natureza pacífica brasileira e que são elementos "políticos" ou "estrangeiros" (como disse o Mourão) que importam os conflitos é tão velha quanto o próprio Brasil.
Já na primeira constituinte a gente tem a elite senhorial brasileira apavorada em relação ao Haiti. Como Célia de Azevedo aponta, em "Onda negra, medo branco", o temor de que os conflitos vindos de fora acabassem com o Brasil ordeiro estavam na origem do país.
O @marcosvlqueiroz , que pesquisa sobre o tema, pode dizer melhor do que eu, mas a verdade é que isso resultava num paradoxo: o grosso da mão-de-obra vinha de fora, com milhares de homens e mulheres escravizados.
O medo da "selvageria" dos africanos inspirava a própria concepção de História do Império. E não era só o Haiti, claro. As revoltas de escravos no próprio Brasil eram vistas como elementos exógenos, como no caso dos Malês, em 1835.
Como João José Reis argumenta, para a elite senhorial foi fundamental construir a narrativa de que a revolta em Salvador foi fruto dos "infiéis" muçulmanos, sem qualquer envolvimento dos escravos "brasileiros" que ali residiam.
Essa ideia de subversão vinda de fora também acompanhou a formação do movimento operário no Brasil, com a crença de que eram os italianos que espalhavam ideias de anarquismo e socialismo no Brasil.
No século XX, pelo menos no Sul, tinha a ideia de que eram os alemães que espalhavam as ideias de socialismo entre os operários. Mas nada supera o pós-Revolução Russa, onde o "perigo vermelho" vinha dos imigrantes do antigo império russo.
Até poloneses foram vigiados pelo DOPS aqui, acreditando que eram "agentes de Moscou".
Ao longo do século XX, o medo das elites se concentrou nos chineses e cubanos que "treinavam camponeses" para a guerrilha.
Bom, na eleição passada rolou medo de médicos cubanos e militares venezuelanos, não é mesmo? Aliás, até a OEA embarcou nessa (e teve pateta confiando nos seus observadores):
A última agora é dizer que os protestos anti-racistas são importados dos negros dos Estados Unidos (que acompanha a longa trajetória do "Não somos racistas", do Ali Kamel). De novo, a subversão vem sempre de fora. Até mesmo do centro do capitalismo, se for o caso.
Isso não é só engano (ou auto-engano), mas imposição de visão de mundo. No centro, a ideia do brasileiro pacífico e cordato diante da opressão. É um desejo, mais do que um erro. E que se manifesta explicitamente na fala do verme presidencial.
Incapaz de metáforas, quando ele fala em jogar no lixo, não é só trucagem com as palavras. Ele não tem capacidade disso. É a firme convicção de que uma história vista de baixo, olhando para o inconformismo dos mais pobres, é perigosa demais e precisa ser descartada.
Que antes disso sejamos nós, do andar de baixo, que descartamos o bolsonarismo para a lata de lixo da história. Essa sim, metáfora adequada para essa gente.
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Lembro de amigos negros relatando coisas horríveis que passavam quando entravam em um supermercado, como o próprio Carrefour. O assédio e as violências simbólicas tavam sempre ali...
Lembro deles e sinto um aperto... Não podiam ser eles, então, sendo espancados até a morte por seguranças privados?
Hoje é 20 de novembro...e homens e mulheres negros não podem nem ir num supermercado em paz.
Sinceramente, eu entendo essa ideia de igualar democratas com republicanos para quem não é americano. Mas há diferenças entre imperialismo em suas formas mais fascistas e um imperialismo que se mostra como "não-imperialista".
A diferença se dá na nossa própria correlação de forças políticas. Sem Trump, Bolsonaro poderia se tornar o fenômeno político que se tornou? Talvez sim, mas seria por outros meios e caminhos.
Trump e o trumpismo alargaram o campo do possível na política dos EUA.
E, consequentemente, em toda a América Latina. O chamado "populismo de direita" ganhou representação política em quase toda América do Sul, ainda que só no Brasil e nos EUA ele triunfou eleitoralmente.
O que mais me impressiona é que no tom da matéria, o Jones representaria toda a esquerda radical (que aparentemente é tão inofensiva que tiveram que publicar uma matéria sobre ela).
Faz mais de 15 anos que tô nesse bonde.
E nenhum desses anos eu defendi ou relativizei Stalin.
Sabem por quê? Porque a esquerda radical é gente pra caralho (tá, não é, mas metaforicamente, é muito mais plural que essa caricatura que pintaram aí).
Eu me vejo muito mais próximo do Safatle nessa e a pergunta dele parece ser boa para ser retomada:
O que se ganha colocando toda a esquerda radical no mesmo barco, sendo obrigada a falar o que pensam sobre socialismo real???
A porcaria do Novo tem uma van com a Thatcher. O El País foi perguntar para o Amoedo se ele também é fã do Pinochet?
Sobre influencers na história, queria dividir um "causo" aqui:
Era 2013, eu dava aula em duas escolas particulares enquanto estava no doutorado. Entre trabalho, pesquisa e deslocamentos, todo dia era umas 10-12h fácil.
Certo dia eu chego numa turma de segundo ano e um dos alunos, que gostava de mim inclusive, chega com o Guia Politicamente Incorreto, do Narloch, perguntando o que eu achava.
Não entrei de sola, mas falei que menosprezava qualquer publicação que dissesse que eu ensinava errado meus alunos.
O guri seguiu insistindo, até que um colega dele se irritou e falou: "mas cara, tu acha que o sôr tá mentindo pra ti, é?"
A alternativa mais óbvia (processos, exonerações, ou até acordos de anistia) requer um imenso capital político. Mas é necessário justamente para isolar setores que serviram ao golpe e garantir que eles não possam mais agir na ilegalidade.
Tem também toda a questão do lítio, que é a principal cartada boliviana na economia global hoje. É preciso suspender os contratos do governo Anez, o que significa ter que afirmar sua própria ilegalidade.
É um bom debate, mas faço a ressalva, de historiador, que isso é também um projeto de construção de memória.
O capitalismo da ditadura foi campeão mundial em acidente de trabalhos, como bem aponta e analisa a minha colega, Ana Beatriz Silva: periodicos.ufsc.br/index.php/mund… .
Uma boa hipótese para pensar aí é comparar com outras ditaduras latino-americanas, como Chile e Argentina, para ver se há semelhante nostalgia popular de "emprego e segurança" que se criou no Brasil.
Mas meu ponto é que a ditadura foi mobilizada por uma série de candidatos e jornais nos anos 80 e 90 como referenciais nesses campos, apagando assim a memória coletiva e traumática de uma superexploração da força de trabalho.