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28 Nov, 30 tweets, 8 min read
O Flamengo foi à Argentina, empatou com o Racing e voltou para casa com um resultado vantajoso, porém perigoso.

Um jogo de altos e baixos, alguns momentos de perrengue e escolhas curiosas. Quero mergulhar justamente nas escolhas de Rogério Ceni!
Olhar para as escolhas de um treinador pode ser mais complicado do que parece. Segundo o @luis_cristovao, sofremos de uma doença coletiva chamada “treinadorismo”, que nos leva a analisar cada decisão unicamente a partir das nossas próprias ideias.

luiscristovao.com/2019/01/08/tre…
Ou seja, se você não gosta de um determinado jogador ou esquema tático, decreta que o treinador “errou” ao fazer aquelas escolhas.

Todo mundo pode (e deve) ter as próprias opiniões, claro! Mas analisar passa por tentar se colocar na cabeça do outro.
Portanto, vamos tentar entrar na cabeça de Ceni e entender o processo de tomada de decisão a partir da perspectiva dele, dentro do que o jogo ofereceu.

Para começar o jogo, ele trouxe o 4-4-2 mais “tradicional” do Flamengo, com o quarteto de frente voltando depois de 26 jogos.
Beccacece parece ter decorado direitinho o manual de Sampaoli para enfrentar o Flamengo: 3-4-3 com marcação adiantada sufocando a saída de bola e muita intensidade nos primeiros 10 minutos de cada tempo.
Isso significava que o Racing marcava a saída do Flamengo com os três homens da frente. Assim, mesmo com Arão descendo entre os zagueiros para fazer a saída de 3, o Fla não conseguia ter superioridade numérica para construir as jogadas com tranquilidade.
Aí veio a primeira mudança importante de Rogério. Alterou a estrutura para um 4-2-3-1, puxando BH para o lado esquerdo, jogando nas costas do ala adversário e esgarçando a defesa adversária.
A mudança tem efeitos interessante. Se o ala recua para marcar BH, deixa espaço para Filipe Luís sair livre com a bola. Se o zagueiro cola em BH, deixa Gabigol no mano a mano por dentro. Além disso, se o Fla não consegue sair por baixo, ganha uma boa alternativa de bola longa.
Mas a mudança mexe também do outro lado do campo. Para não deixar Gerson isolado contra dois no meio-campo, Everton ou Arrascaeta são forçados a recuar pelo meio.

Isso tem um impacto brutal em uma escolha forçada mais cedo, ainda no aquecimento.
Com a lesão de Isla, Rogério Ceni optou por Renê e a dinâmica do lado direito mudou completamente. Afinal, Isla tem muita força ultrapassando pelo corredor e isso combina muito bem com a tendência natural que Everton tem de afunilar o jogo.
Mas Renê não é um lateral de ultrapassagem, mesmo quando joga pelo lado esquerdo, e ainda é canhoto. Jogando pela direita, a tendência é cortar para o meio. Para além disso, a tendência é sempre dominar a bola parando e pensando a jogada, sem carregá-la e sem acelerar os lances.
E nem para por aí. É bom lembrar que Gerson, o volante que sai mais, também é canhoto e não gosta de fazer ultrapassagens pela direita.

Gabigol, o atacante daquele lado, também joga com a perna esquerda e sempre com movimentos de fora para dentro.
E não é nem apenas uma questão de pé preferencial. Mesmo sendo destro, BH ajuda a abrir o campo quando joga pela esquerda, por exemplo. Ele tende a ficar bem aberto e gosta de correr no espaço livre. Assim, não afunila tanto o time e ajuda a bola a circular pelo corredor de fora.
Mas, com essas características na direita e no meio, o Fla virou um time “torto”, que sempre tendia a jogar na mesma direção. Aquelas combinações de passe fora-dentro-fora-dentro, feitas para superar a pressão, morreram, assim como o ataque à profundidade pelo lado direito.
Portanto, o Racing acabou ficando confortável na marcação. Mena, o ala esquerdo, podia subir muito para pressionar intensamente, sabendo que não havia uma armadilha às suas costas, e os volantes argentinos tinham tranquilidade para controlar o meio-campo.
Rogério confia em Renê (e é isso que importa aqui), mas esse resultado tem a ver com a característica, não apenas com a qualidade em si. Mesmo se o Fla tivesse clonado o gênio Filipe Luís e colocado na direita, a tendência seria a mesma.
No fim das contas, Rogério Ceni fez uma escolha bastante curiosa.

Sem Isla, dois caminhos se apresentavam:
1- Manter a mesma estrutura e escalar Matheuzinho
2- Mudar a estrutura para escalar Renê
De certa forma, tentou manter a estrutura (4-4-2/4-2-3-1 com Everton na direita, saída de 3 etc) e escalar Renê ao mesmo tempo.

Poderia, por exemplo, puxar BH para a direita, abrindo o campo por ali. Certamente não seria ideal, mas a lesão de Isla não deixou alternativas ideais.
Quando Gabigol saiu para a entrada de Vitinho, parecia que essa inversão seria feita. Afinal, Vitinho jogou 3 dos 4 jogos anteriores (pelo menos em parte) pelo lado direito — e foi relativamente bem!

Mas a estrutura foi mantida com ele na esquerda e BH passando ao ataque.
O Fla perdeu a saída com a bola longa, mas cresceu no jogo mesmo assim. Cansado, o Racing já não dava sufoco. Mesmo com um lado direito esquisito, as jogadas começavam a fluir. Preocupado, Beccacece reforçou a marcação do lado direito da sua defesa colocando Pillud.
Mas aí veio a expulsão de Thuler e uma última escolha caiu nas mãos de Rogério Ceni: o que fazer, jogando fora de casa, com 1x1 no placar, agora que o time tinha um a menos?

Ele passou Arão para a zaga e promoveu duas mudanças no meio-campo. O Fla passou a uma espécie de 4-3-2.
Mas havia uma característica importante nesse esquema. Rogério ordenou que Vitinho e BH ajudassem a defesa perseguindo os alas adversários. Beccacece logo entendeu e usou o antídoto: mandou seus alas subirem até o final.
Com isso, criou-se uma situação estranha. O Racing tinha a bola, adiantava muito os alas e “forçava” o Flamengo a defender quase que em 5-4-0, às vezes até em um insólito 6-3-0. Todo mundo defendendo a área!
O Flamengo simplesmente não tinha absolutamente nenhum escape para o contra-ataque. Apenas se defendia. Mas, no fim das contas, deu certo. O time esfriou o jogo, deixou o relógio correr e o Racing não criou mais absolutamente nada.
O futebol é um jogo todo encadeado. Uma mudança em uma peça altera todas as outras. Quando você muda a característica do centroavante, mexe no jogo dos meias, dos volantes, dos laterais. Quando muda um lateral, altera a dinâmica toda do time e por aí vai.
Normalmente, é mais importante fazer escolhas coerentes do que geniais. De nada adianta ajustar um detalhe incrível, mas criar outros mil problemas no campo. Afinal, o jogo é cobertor curto: você cobre de um lado, descobre do outro. Não tem muito jeito.
Por isso é complicado quando os comentaristas nas transmissões dizem que "o time TEM QUE fazer isso" ou "DEVERIA fazer aquilo".

No futebol, raramente existe uma resposta certa, óbvia, infalível.

Esse ajuste fino é o que constrói os grandes times.
E a vida do treinador é justamente essa: fazer escolhas. Às vezes dá certo, outras vezes não. Elas precisam condizer com que o jogo pede. Rogério Ceni fez escolhas curiosas contra o Racing, algumas melhores, outras piores. Algumas deram certo, outras nem tanto.
Na terça que vem, sem Thuler e Natan, possivelmente sem Rodrigo Caio e Gabigol, terá escolhas ainda mais complexas a fazer. Precisará encontrar esse ajuste fino que, pelo menos até aqui, o time perdeu.

Assim é o trabalho: uma escolha de cada vez, um passo de cada vez.
PS: a foto de abertura do post, obviamente, está errada. Não é desse jogo. Mas tudo bem, não é o que mais importa :)

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