Bom dia. Prometi um fio para hoje tendo como tema central o possível ocaso da forma-partido. Para começar o fio, recordo como os partidos surgiram no mundo político. Vamos a ele.
1) Farei uma breve referência inicial à dois autores clássicos nos estudos sobre partidos políticos: Maurice Duverger (“Os Partidos Políticos”) e Giovanni Sartori (“Partidos e Sistemas de Partidos”). Há muitos outros autores de referência nos estudos sobre partidos, lembremos
2) Sartori alerta para a transição do que se denominava “facção” para o conceito de “partido” que ocorreu na passagem do século XVII para o XVIII. Em 1782, Voltaire demarcou a diferença entre facção e partido
3) Para Voltaire, facção política seria a organização que atua (do latim “facere”) por interesses nocivos e partido com ideais (a palavra viria do verbo “partire”, que significa dividir, mas também pode significar compartir ou “participar”).
4) Sartori faz sugestões sobre o início da estrutura de facção política organizada durante a Revolução Gloriosa e dos levantes jacobitas (a reação organizada que pretendia reconduzir Jaime II ao trono, após a Revolução Gloriosa), no final da década de 1680.
5) Já Duverger faz uma longa digressão sobre a origem dos partidos políticos que teriam se firmado no mundo no século XIX, a partir de 1850. Antes, o que havia eram clubes populares, associações de pensamento, grupos parlamentares.
6) Duverger sustenta que o caminho das facções para o desenho de partidos seguiu uma lógica que se repetiu na Europa: criação de grupos parlamentares; depois, comitês eleitorais e; finamente, a unificação dos grupos de interesse com comitês eleitorais
7) Os grupos parlamentares eram grupos locais. Foi assim na França, após a constituinte de 1789: deputados bretões se reúnem e percebem que suas questões e pautas vão além de seu território, superando o “clube bretão” para um projeto ideológico: o clube dos jacobinos.
8) Das reuniões que ocorriam no Café Amaury, na Avenida Saint-Cloud, nº 36, em Versailles, saltaram para a constituição da "Sociedade dos Amigos da Constituição" e, daí, para a conhecida articulação jacobina.
9) Evoluímos das organizações dominadas pelos “whips” (organizadores de grupos em votações e assembleias, uma espécie de tropa de choque nos parlamentos), focados em pessoas (os “notáveis”) e interesses grupais, para as organizações baseadas em programas ou ideologias.
10) Alguns partidos foram criados a partir dos comitês eleitorais articulados a partir desses pequenos agrupamentos de amigos que desejavam eleger um candidato. Em outros casos, as “sociedades de pensamento” passaram a desempenhar um papel ativo nas eleições.
11) Também houve a constituição de partidos a partir de decisão sindical, como no caso da criação do Partido Trabalhista Inglês, criado por deliberação de um congresso sindical realizado em 1889.
12) E temos, ainda, partidos que surgem de sociedades secretas e agrupamentos clandestinos que se unificam em ligas políticas. A passagem, portanto, foi gradativa, das monarquias constitucionais para as revoluções europeias que instalaram repúblicas.
13) Bom, o que interessa é que os clubes se vinculavam à eleição de um "notável" e os partidos modernos se articulam a partir de um programa e não funcionam apenas em função de uma eleição ou de um calendário eleitoral. Você deve estar pensando: mas, hoje, eles funcionam assim?
14) Chegamos ao ponto: os partidos atuais se aproximaram do que eram os clubes ou "partidos de notáveis". Robert Michels, em 1911, publicou "Sociologia dos partidos políticos" em que apresentou a "lei de ferro das oligarquias"
15) A tese de Michels é simples: todo partido político tende à se "oligarquizar". Sua conclusão surgiu a partir da história da organização interna da socialdemocracia alemã, mas também dos movimentos socialistas da Itália e da França, e de partidos da Áustria e Inglaterra
16) Para Michels, democracia significaria um regime em "[...] a totalidade do povo é responsável pelos que exercem o poder e que estão na dependência desse mesmo povo". O autor, lembremos, era militante do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) na virada do século XIX para o XX
17) Contudo, para este autor, a organização partidária passa a ser comandada por uma casta de dirigentes cujos interesses são crescentemente conservadores e adaptáveis ao ambiente (orientados mais à conservação do poder interno), afastando-se das intenções dos representados.
18) Não pretendo fazer um inventário das teorias que derivam dessa reflexão. Mas, citarei apenas uma, contemporânea, a teoria do Partido Cartel, formulada por Katz e Mair. Para esses autores, o modelo de partido de massas estava atrelado a uma certa concepção de
democracia.
19) Katz e Mair sugerem que esta concepção de democracia era típica das sociedades industriais, mas que vivemos uma outra lógica desde o final do século XX. Criticam Duverger - que citei no início desse fio - porque acreditava que só havia uma saída para os partidos
20) Para Duverger, essas organizações se tornam partidos de massas, ou fracassam na sua função de integração social (partido catch-all). Katz e Mair afirmam, contudo, que "os partidos de massa modernos foram um fenômeno próprio a um tempo e contexto específicos.”
21) Numa sociedade cada vez mais fragmentada como a nossa, os partidos deixam de representar e surgem novos meios para a canalização de demandas (movimentos sociais, associações civis, organizações não governamentais)
22) Os partidos políticos passam a se fortalecer na atualidade não como canais de representação social, mas como em função de sua relação cada vez mais estreita com o Estado
23) A separação entre o Estado/partidos e a sociedade civil fica mais clara e os partidos passam a viver do acesso aos fundos públicos, como fundos partidários, fundos eleitorais, emendas parlamentares, cargos comissionados etc
24) Os partidos deixam de ser agentes da sociedade civil no Estado para se tornarem intermediários, buscando agregar demandas diversas e levá-las para a burocracia estatal. Os partidos vão se constituir também como agentes dessa burocracia e atuar em defesa de suas políticas
25) O que irá determinar o acesso a esses recursos é a posição ocupada pelo partido em função de seu êxito eleitoral e a representação conquistada no governo. Daí surge o conceito. Cartel pois há incentivos para que os partidos cooperem entre si ao invés de competir
26) Então, vamos ao impasse. Se vivemos uma sociedade cada vez mais fragmentada e fluida - os trabalhadores de aplicativos que o digam - e se os partidos não são mais canais de representação, como fica a relação dos cidadãos com os partidos?
27) A crítica ao sistema de representação vem num crescendo desde Maio de 1968. No final do século passado, vários autores já apontavam um enorme ressentimento do "cidadão comum" em relação às autoridades ou representantes públicos. No século XXI, as críticas aumentaram
28) As enormes e descontínuas mobilizações de massa ocorridas neste século revelaram o esgotamento da forma-partido que não esteve presente em nenhuma dessas manifestações. Os partidos não estão mais nas ruas porque sua dinâmica é outra.
29) Por outro lado, as imensas mobilizações ocorridas neste século (Argentina, mundo árabe, Brasil, Espanha, França, Islândia e tantas outras) não redundaram em mudanças institucionais justamente porque rejeitam e negam este campo de disputa. Vivemos, portanto um impasse
30) Esta é a base do que estou sugerindo se o ocaso da forma-partido neste século: não há ponto de ligação entre os cidadãos e os partidos. As dinâmicas são distintas, próprias, não se retroalimentam. Vivemos, aqui, um impasse gigantesco entre dois mundos, dois séculos (FIM)

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16 Dec
Prometi um fio sobre os motivos para o Senado derrubar o golpe que a Câmara de Deputados deu nos recursos do Fundeb. Lá vai. Será um fio curto.
1) Uma primeira causa foi a enxurrada de mensagens aos deputados com argumentos técnicos. Parece pouca coisa, mas parte dos senadores não está acostumada a aprofundar análises sobre financiamento da área social e seus impactos na vida dos seus eleitores.
2) Outra iniciativa foi uma ação articulada na grande imprensa. Mas, a ação principal foi o corpo-a-corpo que, nos EUA, chama-se lobby. O PSDB acabou rachado. E houve intenso trabalho envolvendo PDT, MDB, PSD e Rede. Todos senadores se reuniram com os articuladores pró-Fundeb.
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15 Dec
Bom dia. Farei um mini fio analisando como empresários, Centrão e Bolsonaro decidiram mirar nos fundos públicos da educação e saúde neste último período e o papel do Centrão na manutenção dos índices de aprovação do governo federal. Lá vai fio:
1) Postei agora há pouco uma nota de Daniel Cara em que se revela o desvio de recursos públicos do Fundeb para a iniciativa privada: quase 16 bilhões. Não se trata de uma "ajuda" ao Sistema S ou às escolas filantrópicas. Trata-se de disputa por recursos públicos pelos empresários
2) O texto de Daniel Cara informa que "Em 2019, conforme análise de dados da Receita Federal produzida por João Marcelo Borges (FGV), concluiu-se que as entidades filantrópicas e confessionais receberam 6,37 bilhões de dinheiro público (...) e o Sistema S recebeu R$ 21 bilhões."
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13 Dec
Vou começar o fio sobre o Fundeb que prometi fazer nesta manhã. Começo explicando a história que desaguou no Fundeb. O fio será grande. Lá vai.
1) O financiamento foi para a educação foi entendido como vinculação constitucional de um percentual mínimo de recursos para a educação a partir da Constituição Federal de 1934. O princípio da vinculação de recursos esteve presente nas Constituições Federais seguintes
2) A Carta de 1937 determinou que o direito à Educação se constituía num dever da família, e ao Estado era definido um papel secundário. Esta concepção retornou, em certa maneira, no discurso da Escola Sem Partido, para quem educação é papel da família
Read 43 tweets
5 Dec
Há sinais de uma disputa importante que se insinua no interior do PT. Existem alguns polos em disputa. Mas, o foco geral é com as direções atuais, lideradas pela corrente majoritária: a CNB. Segue um pequeno fio
1) Muitas movimentações internas já ocorriam no PT quando o desastre eleitoral se prenunciava. Alguns lideranças diziam que preferiam aguardar o final das eleições para não serem acusados de contribuir para a derrota eleitoral. Mas, foi Genoíno que saiu à frente
2) Em suas recentes entrevistas, Genoíno coloca o dedo na ferida. Numa delas, criticou duramente os governadores do PT no nordeste diariodocentrodomundo.com.br/se-a-esquerda-…
Read 22 tweets
3 Dec
Bom dia. Hoje, quero destacar uma nova liderança de Belo Horizonte. Uma liderança que lembra o Garrincha. Segue o fio
1) A analogia entre política e futebol é um recurso didático usado no Brasil. Há quem a considere uma marca masculina da narrativa política. Mas, sinceramente, esta distinção deixou de ter razão de ser até mesmo porque a melhor seleção de futebol de nosso país é a feminina. Image
2) O fato é que usar deste recurso é uma maneira de comunicar uma ideia ou interpretação política que pode ser árida para o leitor. Como desconhecer que ao dizer que um político parece um centroavante ao estilo “vamos que vamos” de Serginho Chulapa? Image
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30 Nov
Bom dia. Ainda vivemos o rescaldo das eleições de 2020. Mas, já dá para dar alguns pitacos. Faço um fio com o intuito de sugerir que cravar certezas sobre a política brasileira é andar na corda bamba. Segue o fio.
1) No Brasil, país latino, o esporte é a aposta. Um movimento infantil, de autoafirmação, em que se pretende vender a imagem de adivinho. Algo intrigante, dado que se o apostador perde, mergulha na penumbra do esquecimento. Se vence, gera surpresa até fazer a aposta errada.
2) A palavra que define essas eleições não é derrota, nem mesmo vitória, mas transição. Uma transição de uma decisão que tinha se formado entre 2016 e 2018 e que, agora, parece se dirigir ao lado oposto.
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