Hoje escrevi no Jota sobre como uma regra da Anvisa e a interpretação que estamos dando para uma lei podem nos custar milhares de vidas em 2021. Na verdade, já nos custaram algumas. Quais são e o que podemos mudar? Segue o fio 👇
A regra. A regra que me refiro é a exigência pela Anvisa de que os laboratórios interessados em obter autorização de uso emergencial de vacinas contra a Covid-19 precisem no mínimo ter iniciado estudos clínicos de Fase 3 sobre eficácia e segurança da vacina em solo nacional.
Essa exigência é cientificamente inútil e pragmaticamente danosa. É inútil do ponto de vista científico porque a princípio não há razão especial para acreditarmos que a segurança ou eficácia de uma vacina seria substancialmente diferente na população brasileira ou em outro país.
Mas também é inútil porque, se tivéssemos razões para acreditar nesta possibilidade, seria preciso exigir não só um estudo Fase 3, mas um estudo Fase 3 com número muito grande de voluntários para que o teste clínico tivesse poder estatístico suficiente para mensurar a diferença.
Pragmaticamente, a regra é danosa pois impõe a todos os laboratórios uma burocracia grande em tempo e dinheiro que eles não precisam enfrentar em outros países. A Fase 3 exige envolvimento de instituições parceiras, cadastramento do teste clínico, pelo menos 1.000 voluntários...
...que toma tempo recrutar e custa acompanhar. Isto é, aumenta os custos de transação, como diríamos em análise econômica do Direito. Assim, resultado excelente como recente Novavax não repercutem direto aqui. O teste clínico envolveu 30 mil pessoas, mas não teve braço no Brasil.
Há também um problema de interpretação da Lei 14.006/2020 que alterou a Lei 13.979/2020. A Lei 14.006/2020 foi uma medida emergencial que estabeleceu prazo de 72 horas para que a Anvisa autoriza a importação de medicamentos essenciais no combate à pandemia planalto.gov.br/ccivil_03/_ato…
A Lei 14.006 não menciona explicitamente vacinas, porém é razoável dada a emergência de saúde pública elas estejam inclusas nas categorias de “quaisquer medicamentos” ou “quaisquer insumos da área da saúde”.
Problemas com vacinas: a autoridade sanitária pode interpretar que Lei 14.006 só conta para registros definitivos no exterior e não para emergencial. E a autorização de uso emergencial de vacinas pelas agências nomeadas não está sendo acompanhada de autorização de uso comercial.
Isto é, temos uma lei cujo objetivo é agilizar a resposta do país à emergência de saúde pública que, no entanto, quando aplicada às vacinas leva a uma interpretação que exige a certificação definitiva, não-emergencial!
Assim chegamos em situação vergonha que está matando brasileiros. Por ex, vacina da Pfizer-BioNTech aprovada em dezembro pelo FDA e EMA já foi aplicada com segurança e eficácia em mais de 30 milhões de pessoas no mundo, mas ainda não está aprovada para uso emergencial no Brasil.
A vacina da Moderna também foi aprovada pelas agências em dezembro e aplicada em milhões de pessoas, mas segue não aprovada para uso no Brasil. Novavax será a próxima da lista a ter aprovação internacional e levará mais semanas ou meses para avaliarmos.
Não estão aprovadas APESAR do mundo inteiro já saber que são seguras e eficazes. Não estão aprovadas devido a burocracias e por interpretação contraproducente da Lei 14.006/2020, e não para garantir maior segurança aos brasileiros do que usufrui hoje um americano ou europeu.
Pelo contrário, cada dia que demoramos para trazer vacinas aprovadas, mais brasileiros são expostos ao vírus, internados e sufocados pela Covid-19. No Reino Unido, estima-se que com tão poucas quanto 20 pessoas vacinadas seria suficiente para salvar 1 vida em grupo prioritário.
Por estas razões, na minha opinião a Anvisa deveria:
1) revogar por completo a exigência de condução em solo brasileiro de braços do estudo clínico Fase 3 para autorização emergencial de vacinas contra a Covid-19.
2) Deveríamos mudar a interpretação da Lei 14.006/2020 quando aplicada no tema vacinas para que autorização emergencial pelas agências nomeadas já seja suficiente para permitir a vinda destas vacinas ao Brasil em 72 horas. A autorização pode ser mais restritiva...
...mais restritiva que a autorização emergencial atual, conforme a Anvisa considerar necessário. Mas que se permita que a lei cujo objetivo é facilitar o uso de produtos que salvem vidas seja usada para rapidamente salvar vidas também com vacinas.
Caso para este fim não se queira acionar a Lei 14.006/2020 como sugiro, dado o problema concreto que está atrasando a vinda de vacinas, deveria ser matéria urgente no Congresso Nacional editar nova lei que estabeleça regras para facilitar a vinda de vacinas para o Brasil.
Aproveitar o processo de avaliação de órgãos reguladores estrangeiros de alta reputação para não incorrermos nos custos em tempo, dinheiro e vidas que essa demora trás é uma ótima estratégia.
Facilitaria as negociações dos laboratórios com o governo federal e caso ele continue não demonstrando interesse em trazer vacinas, facilitaria também os esforços dos vários governadores que estão tentando trazê-las.
Não podemos devolver as vidas perdidas pela burocracia desta aprovação entre dezembro e janeiro, mas podemos impedir que mais mortes evitáveis como essas aconteçam no resto do ano. Diante das consequências conhecidas, é o que deveria ser feito.
Este texto um pouco mais completo que no fio e com referências está disponível no Jota. Daqui alguns dias publicarei também no meu blog. Fim do fio! jota.info/opiniao-e-anal…

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A imprensa precisa cobrar mais detalhes sobre essa tal "compra de 33 milhões de doses de vacina pelo setor privado", porque com as informações que temos a história está MUITO estranha e o governo precisa se explicar. Segue o fio 👇
www1.folha.uol.com.br/equilibrioesau…
Informações de fundo necessárias que todos precisam saber:
- Governo tem acordo com AstraZeneca (AZ) para compra de 100 milhões de doses
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Vamos analisar. Aparentemente o governo enviou carta à AZ autorizando empresas privadas brasileiras a comprarem 33 milhões de doses. Mas o lote está saindo por US$23,79 cada dose, quase 5 vezes mais caro que o valor que o resto do mundo está pagando. Isso é muito estranho...
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Preço de vacinas: R$100 cada Pfizer, R$50 cada Coronavac, R$25 cada AstraZeneca. Qual vale mais a pena?

Tanto faz! O preço que governo paga por cada dose de vacina Covid é irrelevante. Não é exagero, é análise custo-benefício. Segue o fio que eu explico 👇
Para saber se uma vacina é "cara" ou "barata" não é suficiente comparar preço de uma com a outra. O custo de vacinas assim como outros tratamentos de saúde devem ser analisados em função dos benefícios potenciais que geram. E quais são esses benefícios?
Para simplificar, vamos dividir os benefícios das vacinas em três partes:

- Benefícios diretos - curto prazo
- Benefícios diretos - longo prazo, a valor presente
- Benefícios indiretos

Vamos começar pelos diretos 👇
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24 Jan
Governo Federal @govbr emitiu uma nota oficial "explicando" por que não fizeram acordo com a Pfizer. Segue ponto a ponto as mentiras, erros lógicos, falta de bom senso, omissões e crimes dessa grande FARSA dessa nota. Segue o fio👇
Logo de início somos brindados com uma hipocrisia sem igual. Governo alega que chegariam poucas doses com acordo da Pfizer e isso geraria frustração. Bem, É ÓBVIO que sem acordo teremos AINDA MENOS DOSES. É ridículo acharem que isso é motivo razoável!
gov.br/saude/pt-br/as…
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23 Jan
Reclama da cloroquina, mas acha que existe "alopatia". Estamos de olho.
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A história de laboratórios de vacinas Covid buscando não se responsabilizar por efeitos adversos deixou muitos com pé atrás. Parece suspeito, mas é só complexo. Escrevi longo texto no @JotaInfo explicando por que você não precisa se preocupar. Quer entender rápido? Segue o fio 👇
O 1º ponto a saber é que a não-responsabilização por efeitos adversos raros não é novidade das vacinas novas. Na verdade, essa regra já vigora para todas as vacinas em países desenvolvidos há décadas. Brasil, países pobres e em desenvolvimento é que ainda têm regulação antiga.
À primeira vista parece algo contra intuitivo ou até absurdo, porém há boas razões para ela existir. Vamos entender as razões para essa cláusula. Para isso precisaremos de um pouco de direito, economia, estatística e também de história.
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