Fio sobre o que não é dinheiro e como ele não surgiu.

1. Era uma vez o escambo, um sistema que requer dupla coincidência de desejos, ou seja, se alguém produz pregos e deseja sapatos, tem que encontrar algum produtor de sapatos que esteja disposto a adquirir pregos.
2. Como o escambo foi se tornando muito difícil com o aprofundamento da divisão do trabalho (mais gente produzindo coisas diferentes), as pessoas inventaram o dinheiro, ou seja, escolheram uma mercadoria de aceitação geral capaz de liquidar qualquer transação.
3. Além disso, normalmente, as mercadorias escolhidas como moeda não poderiam ser perecíveis, ou seja, deveriam armazenar seu valor ao longo do tempo, nesse sentido, carne, por exemplo, não seria uma boa moeda, já o ouro e outros metais seriam ideais.
4. A mercadoria para ser moeda também deveria ser facilmente mensurável e divisível (fácil de pesar e dividir – tipo o ouro). Tinha que ser simples de carregar tb. Daí que se deriva as funções clássicas da moeda: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta.
5. Eis o reino da fantasia do escambo. E é assim que quase todo economista tem seu primeiro contato com a economia monetária.

Começam muito errado, né?
6. A história acima até que é bem amarrada, intuitiva, criativa. Convence mesmo. Mas isso ainda não quer dizer muita coisa. A história da terra plana também foi aceita por muito tempo (pasmem, tem gente que ainda acredita nisso até hoje).
7. O criacionismo, dada a sua simplicidade, também é bem mais popular que a teoria da evolução. Enfim, para todo problema complexo, há uma resposta simples, intuitiva, didática e ... errada.
8. O grande problema da história acima é que ela não passa de um mito. E o mito, como muito bem explica João Sayad, se opõe a história: “A história procura desvendar o que aconteceu realmente no passado. O mito é uma história, ou melhor, uma estória que não aconteceu realmente.”
9. Segundo David Graeber, professor da London School of Economics com doutorado em Chicago e um dos maiores antropólogos do dinheiro da atualidade, há quase um século os antropólogos já desmontaram o mito do escambo.
10. Não há, em toda a antropologia do dinheiro, nenhum indício de que um dia, em qualquer lugar do universo, existiu uma sociedade como a apresentada nos livros introdutórios de economia. Porém, de acordo com Graeber, há numerosos indícios sugerindo que isso nunca aconteceu.
11. A antropóloga Caroline Humphrey, de Cambridge, é enfática: “Nunca foi descrito nenhum exemplo puro e simples da economia do escambo, muito menos de que o dinheiro tenha surgido do escambo; toda a etnografia existente sugere que esse tipo de economia nunca existiu.”
12. Anne Chapman reafirma de maneira ainda mais incisiva a posição de Humphrey ao afirmar que não há evidências de nenhum sistema puro de escambo na história da humanidade (David Graeber).
13. A construção desse mito, obviamente sem qualquer seriedade científica, sustenta toda a teoria econômica convencional: os seres humanos possuem uma propensão natural à troca
14.... e, a partir disso, organizam sociedades baseadas no escambo que evoluem – naturalmente e graças ao aprofundamento da divisão do trabalho – para sociedades capitalistas de mercado no qual a moeda serve como mera mercadoria escolhida para facilitar as trocas.
15. Sendo assim, o mito do escambo deriva de um outro mito acerca da natureza humana. Essas coisas, ao menos no campo da Economia, surgem com Adam Smith, que na época, obviamente, não tinha acesso aos estudos arqueológicos e antropológicos que temos hoje.
16. Tudo isso tem implicações importantes na teoria econômica e nas políticas concretas, uma delas é a de que o Estado realiza os seus gastos retirando o dinheiro que surge de maneira espontânea nos mercados.

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More from @deccache

15 Mar
1. É curioso como o mainstream/ortodoxia do resto do mundo discute a política fiscal em termos totalmente distintos do debate brasileiro. Enquanto lá se discute qual deve ser o tamanho da expansão fiscal, rasgando-se, definitivamente, as teses de contração fiscal expansionista+
2... por aqui os liberais debatem como manter o teto de gastos, ou seja, a austeridade, em pé. Seria um desígnio divino ou uma questão climática? Ou seria fruto da formação de uma elite de raízes escravocratas, espoliativa e subordinada ao imperialismo que vê na crise...+
3.... uma oportunidade única de, aproveitando-se da apatia social causada por uma pandemia terrível, destruir o fornecimento de bens comuns, esmagar os investimentos públicos e espoliar os ativos públicos em prol de lucros privados?
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13 Mar
Fio com desenhos sobre a PEC 186.

1. Sobre Estados, Municípios, qdo o gatilho for ativado, veda a concessão, A QUALQUER TÍTULO, de reajuste. Isso implica em algo pior que congelamento: é redução de poder de compra de uns 4,5% todo ano! E não é por 15 anos. É pior. É PERMANENTE!
2. Já tem um monte de Estado e Município com gatilho ativado, o que torna o congelamento automático. A esmagadora maioria dos servidores estão nos Estados e Municípios. E são justamente os mais pobres. No caso dos Estados, a situação hoje é essa (metodologia do Tesouro).
3. No caso dos municípios, várias capitais já estão com o gatilho ativado. Fora que para eles pode ter acionado o gatilho em 85% de forma facultativa. Olhem a situação das capitais (dados do Tesouro)
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10 Mar
PEC 186: A DOUTRINA DO CHOQUE APLICADA

1. Milton Friedman, grande referência do partido NOVO, Paulo Guedes e cia, defendia explicitamente o método usado nesta PEC.
2. Além do apoio à ditadura de Pinochet, Friedman, em 2005, já com 93 anos, presenciou o furação Katrina, em Nova Orleans. E viu na tragédia uma oportunidade de impor um projeto altamente impopular de mercantilização dos bens comuns, garantindo lucros extraordinários p/ o capital
3. Diante da tragédia, ele percebeu que as escolas públicas e moradias estavam totalmente destruídas e alegou que isso era uma grande oportunidade para o capital passasse lucrar com educação privada e construção de moradias. O furacão Katrina cumpriu o mesmo papel da austeridade.
Read 5 tweets
22 Feb
SOBRE A PEC EMERGENCIAL E A PROPOSTA DE REDUÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO!!!!

1. Já circula a minuta do parecer da PEC Emergencial no Congresso, texto que deve ser modificado nas discussões que serão abertas durante a semana. Portanto, a hora de pressionar é agora. O que temos?
2. Um dos pilares da medida é a redução dos rendimentos dos servidores civis (EXCLUINDO OS MILITARES) e do salário mínimo por dois anos. Abaixo vou explicar melhor a indecência que é a proposta de redução de salário dos trabalhadores ao passo que se blinda os militares!
3. Além disso, a PEC cria um regime especial de calamidade p/ pagar o auxílio emergencial fora do teto, da regra de ouro e da meta fiscal deste ano. É uma forma de driblar três regras fiscais inexequíveis e incompatíveis entre si, mesmo sem considerarmos a necessidade do auxílio
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18 Feb
1. Torço pelo Gil, mas quando ele fala de macroeconomia tá todo errado rs. E olha só, é a Juliete que tá certa nessa: existem várias teorias! E não Gil, "emitir moeda" não gera, necessariamente, inflação. E sim, a moeda pode ter impactos reais. Segue o fio, galera...
2. Sobre emissão de moeda, saca só como os EUA imitiu moeda loucamente desde 2008. O gráfico abaixo é o M0 (base monetária) e se refere ao volume de dinheiro criado pelo FED - isto é, papel moeda e reservas bancárias... Mas e a inflação, como anda? Rastejante, Gil! Image
3. Como vcs viram aí no gráfico de cima, os EUA mandaram ver na impressora (M0) e tacaram moeda na Economia. Agora, no gráfico aí de baixo, olha o que acontece com a inflação: nadinha, Gil! Baixa até demais. O Gil criança, estava mais certo que o Gil economista. Image
Read 13 tweets
16 Feb
1. Por que considero um problema político, técnico e teórico misturar a necessidade e urgência de renovação do auxílio emergencial com o debate, também fundamental, da taxação progressiva dos mais ricos?

Segue o fio que explico. Vou apanhar de todos os
lados, mas vamos lá...
2. Primeiro de tudo: renovar o auxílio emergencial é tarefa para ontem. Portanto, subordinar essa emergência à obtenção de recursos advindos de uma reforma tributária é um equívoco temporal/técnico; teórico e, creio eu, de grandeza de valor.

Explico...
3. Equívoco temporal e técnico pq mesmo que a gente faça o milagre de aprovar uma reforma tributária progressiva na semana que vem, os efeitos só se darão no próximo ano por conta do princípio da anterioridade anual para o IGF; IR (lucros e dividendos entra aqui); heranças...
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