Qual o papel do Judiciário na democracia brasileira? A propósito da decisão que impede Renan Calheiros de ser votado (sic) como relator da CPI da Covid.
1. Considero o dever de fundamentar um dos mais essenciais à jurisdição em uma democracia. O motivo é simples: o juiz não é o dono da posição, porém mero ocupante. Fundamentar não é dizer o que ele pensa, porém como determinada decisão é o melhor arranjo diante das normas.
A decisão tem zero fundamento. Zero. Invoca-se pra lá de genericamente duas entidades abstratas: moralidade e poder geral de cautela. Por abertas que são, imprescindível fundamentar sua incidência no caso concreto. Nula. Completamente nula.
2. Mas também é preciso analisar as razões da Deputada, autora do processo. Alega que Renan não seria imparcial. Indago: há dever de imparcialidade ao membro da CPI? CPI é uma investigação e, assim, um procedimento inquisitorial. Não tem sequer o poder de aplicar sanções.
Busquemos no CPP analogia possível: não há dever de imparcialidade do Delegado, na medida em que conduz atividade inquisitorial, não judicante. O que os Delegados têm - e também assim os membros da CPI - é um dever de isonomia.
Procedimentos inquisitoriais não excluem o direito de defesa dos investigados. A propósito, confiram o livro da Profa. Marta Saad. Assim, abusos investigatórios, inclusive no âmbito da restrição ao direito de defesa, podem e devem ser sanados, se o caso via Judiciário.
Nem mesmo quando os parlamentares agem como juízes deles se espera imparcialidade. Ou alguém afirmará em sã consciência que Bolsonaro foi um juiz imparcial no impeachment de Dilma?
3. Também afirma a Deputada que Renan causaria um ambiente hostil ao Presidente. Indago: tem legitimidade uma membra do Congresso para buscar em juízo garantir a não hostilidade do Presidente em CPI? Peço ajuda aos universitários, pois não encontro essa legitimidade processual...
E o que seria ambiente hostil? Se não isonômico ou limitador do direito de defesa, corrige-se o eventual abuso, até pela via do Judiciário. Quer parecer que a Deputada não quer que o Presidente seja investigado; que se lhe garanta um ambiente ameno, pró-forma. Uma anti-CPI.
Ela querer nem é tão grave; difícil de engolir é o direito presidencial a uma CPI amena, postulado por uma Deputada. Detalhe: o relator sequer é encarregado de conduzir a investigação, papel precípuo do presidente (de pautar), dividido com o colegiado (de decidir).
4. A cereja do bolo vai para a parte dispositiva. Impede-se que Renan seja votado relator; todavia, o poder de indicar relator é do Presidente da CPI, nos termos do art. 89, III, do Regimento Interno do Senado (www25.senado.leg.br/documents/1242…).
5. Em resumo: o magistrado achou indevido que Renan fosse o Relator. Justo. Precisava, porém, para dar a liminar, que fosse ilegal. E mais: que a decisão pudesse ser dada naquele processo. Ignorando a legitimidade processual, o cabimento do pedido e os fundamentos legais,
travestiu sua vontade, pessoal, de decisão judicial. Ilegal. O âmbito da política é constitucionalmente legítimo para uma série de conflitos; o Judiciário - mesmo que, como eu, descrente da política - só deve garantir a legalidade do jogo político. E nada mais.

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23 Apr
Conversas do Telegram coletadas na Operação Spoofing e prova ilícita: não confundamos alhos com bugalhos (segue o fio).
1. Algumas pessoas foram denunciadas na Spoofing pela prática de invasão de dispositivo informático (art. 154-A, caput) do CP, qualificada pela obtenção de conteúdo de mensagens (p. 3o). Conclusão fática: conversas de terceiros foram coletadas, mediante hackeamento.
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29 Mar
A Presidente da CCJ da Câmara, ao incitar a PM da Bahia a desobedecer ordens do Governador, comete crime (segue o fio)
É crime militar a reunião de militares agindo para descumprir ordens recebidas de superior; se armados, os líderes podem ser punidos com até 23 anos e 4 meses de prisão (art. 169, I e p. u. do CP Militar).
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16 Mar
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8 Mar
O que e por que decidiu Fachin em relação a Lula? (segue o fio). Sim, provável que outros virão. :)
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