O jogador dinamarquês Christian Eriksen não teve uma convulsão. O que ocorreu foi uma morte súbita. E, devido ao rápido atendimento, essa morte súbita foi "abortada".

Fiz esse fio para explicar.
Morte súbita é aquela inesperada, que ocorre até 1 hora após o início dos sintomas (no caso de Eriksen, foi instantâneo).
13% das pessoas morrem subitamente. 50% das pessoas que morrem do coração morrem subitamente.
No esporte, ocorre 0,5-2,1 morte súbita por 100 mil pessoas/ano
O coração de uma pessoa só pode parar de bater em 4 ritmos cardíacos:
- Fibrilação ventricular e taquicardia ventricular sem pulso
- Atividade elétrica sem pulso e assistolia.
As duas primeiras são ritmos "chocáveis", ou seja, respondem à desfibrilação.
Foi um estudo seminal de 1989 do Antoni Bayés de Luna que demonstrou, no American Heart Journal, que 84% das mortes súbitas ocorrem em ritmos chocáveis.
Daí a importância do uso de desfibriladores externos automáticos (DEAs).
Sem o DEA, os ritmos chocáveis são usualmente fatais
Quanto mais rápido uma pessoa em morte súbita por ritmo chocável recebe a desfibrilação, melhores as suas chances.
A cada minuto sem desfibrilação, a chance de sobreviver cai 10%!
É a maior emergência de toda a Medicina.
Atualmente, a taxa de sobrevivência de um episódio de morte súbita é de 7,6% em países desenvolvidos.
Em locais onde há DEA e há treinamento em massa da população para oferecer suporte básico de vida (compressões de qualidade e manuseio correto do DEA), a chance é maior.
A fibrilação ventricular é, literalmente, um tremor do músculo cardíaco - ele não bate, ele treme. E isso não gera pulso cardíaco.
Sem pulso, uma pessoa morre. Sem pulso ao cérebro, pode até haver convulsões.
(Por isso alguns jornais estão noticiando erroneamente "convulsão")
Na verdade, nesse elegante estudo, foram vistos que 4,3% dos episódios de morte súbita reportados ao 9-1-1 foram chamados de "convulsão" pelas pessoas que telefonaram.
A principal causa de morte súbita é o temido infarto (o que chamam de "infarto fulminante"). Antes dos 35 anos, contudo, essa causa ainda é frequente, mas começa a perder espaço para outras doenças cardíacas: cardiomiopatia hipertrófica, displasia do VD, entre outras.
Para reduzir o risco de morte súbita, muito já foi feito, mas ainda há muito a se fazer. Esse gráfico demonstra o "paradoxo da morte súbita".
Perceba que quem tem menor chance de morrer de morte súbita é justamente quem mais frequentemente morre em números absolutos.
Atletas projetam a imagem de saúde e por isso esses eventos chocam, mas o risco individual é baixo.
Neles, a adaptação natural do coração ao exercício intenso e a atuação do sistema nervoso autônomo podem acelerar ou engatilhar canalopatias ou doenças cardíacas "escondidas".
A primeira morte súbita em atletas de que se tem notícia é a de Feidípedes em 490 a.C.
Apesar de quase universalmente aceito, o screening pré-participação esportiva com ECG e outros exames é controverso - gera muitos falsos positivos e, em Israel, não reduziu chance de morte.
Sobreviventes de morte súbita devem ser transferidos imediatamente para um hospital cardiológico. Lá, pode ser necessária a realização de um cateterismo.
A busca por essas doenças escondidas pode até envolver estudos genéticos.
Sobreviventes de morte súbita abortada por ritmos chocáveis devem ter o implante de um CDI indicado.
CDI é um cardiodesfibrilador móvel que implantamos no paciente. O aparelho detecta arritmias e entrega um choque sempre que necessário.
A causa que levou à arritmia também deve ser diagnosticada e tratada (infarto deve receber stent, por exemplo).

Se for descoberta uma cardiomiopatia ou canalopatia (doença dos canais iônicos do coração) genética, os familiares devem ser rastreados.
Em resumo, em casos de morte súbita:
- O paciente deve ser desfibrilado rapidamente (cada minuto sem desfibrilar reduz em 10% sua chance)
- Deve receber compressões eficazes por pessoas treinadas também rapidamente
- Deve ir a um cardiologista.
- Pode ter que receber um CDI.

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13 Jun
O jogador dinamarquês Eriksen poderá voltar a competir?
Para isso, precisamos saber o que é um CDI, como funciona, por qual razão está indicado em Eriksen e quais as consequências do seu implante.
CDI é a sigla de "cardiodesfibrilador implantável". É um aparelho composto por duas partes:
- A bateria, de 70 gramas, implantada na parte anterior do ombro, abaixo da clavícula direita;
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2 Jun
Pra coroar o lançamento do livro “Manual de MBE”, eu e a Sanar montamos uma jornada IMPERDÍVEL com muita gente boa pra falar de ciência, evidência científica de qualidade, comunicação em ciência e tentar traçar alternativas pra melhora do nosso ensino. Segue o fio:
A live com a @TaschnerNatalia (Natalia Pasternak) já passou (foi dia 31/05, mas você pode rever em meu IGTV). Falamos sobre incerteza, evidências boas e evidências ruins..

Link: instagram.com/tv/CPjojv7qtBc…
No dia 04/06/2021, receberei a querida @luizacaires3 (Luiza Caires), jornalista e editora do Jornal da USP.
Vamos falar de jornalismo de ciências e divulgação de evidências científicas com responsabilidade.
Marca aqui seus amigos jornalistas!
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1 Jun
Tom é um homem de 58 anos que vivia uma vida desregrada.
Certo dia, teve dor torácica intensa irradiando para os dois braços. Como a dor não cessou espontaneamente, pegou um Uber até o hospital. Ao chegar lá, esse era o ECG: Image
Ao ver o ECG, o médico descartou Infarto com supra e indicou Dipirona.

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Vamos aprender a nunca cair nessa armadilha?
Para a resolução desse caso, preciso lembra-los que a Medicina é uma ciência probabilística.
Ao entrar em um PS com dor torácica, a probabilidade de haver uma isquemia aguda (não necessariamente OCA) é de 25% (dados de estudos prévios).
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17 May
Com o anúncio do estudo ACTION, tivemos a confirmação que médicos de todo o mundo caíram mais uma vez no canto do mecanicismo. A anticoagulação é a "cloroquina socialmente aceita".

Vamos entender a razão pela qual tantos médicos e leigos caíram nessa pegadinha cognitiva.
1. É plausível, mas nem tanto.
A anticoagulação profilática ou terapêutica é uma das terapias mais difundidas da Medicina. Tão difundida que parece ter fortes evidências do seu uso.

Mas não é bem assim.
1.1 O pontapé inicial da anticoagulação para TEV/TEP veio em 1960 com um estudo não-cego, não-randomizado, sem confirmação diagnóstica, interrompido precocemente.

"Ah, mas há outros trials depois desse..." você diria.
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17 Apr
Seu Ednaldo, 58 anos, funcionário de uma emissora de TV, dá entrada no PS por "síncope".
Foi solicitado um CATE e o paciente recebeu um stent (lesão entre 70 - 90% na DA).
Mas ele não infartou e o stent foi mal indicado. Quais erros e vieses cognitivos foram cometidos aqui?
1o erro: "garbage in, garbage out". Assim como em uma meta-análise, se os dados que você recebe são lixo, sua interpretação também será um lixo.
Em uma conversa mais detalhada, Ednaldo conta que teve uma sensação que ia desmaiar e ficou fraco. Não perdeu a consciência.
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15 Apr
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