O jogador dinamarquês Eriksen poderá voltar a competir?
Para isso, precisamos saber o que é um CDI, como funciona, por qual razão está indicado em Eriksen e quais as consequências do seu implante.
CDI é a sigla de "cardiodesfibrilador implantável". É um aparelho composto por duas partes:
- A bateria, de 70 gramas, implantada na parte anterior do ombro, abaixo da clavícula direita;
- O(s) eletrodo(s), que passeia por uma veia até o coração.
A cirurgia é realizada por um eletrofisiologista ou por um cirurgião cardíaco e dura em torno de 1 hora.
O CDI serve para dois propósitos:
- Monitoração contínua de cada batimento cardíaco à espera de uma arritmia maligna
- Função marca-passo (sim, todo CDI pode funcionar como marca-passo caso o coração precise)
Na maior parte do tempo, o aparelho fica apenas em vigilância.
Caso detecte um aumento na frequência cardíaca, o aparelho inicia uma série de algoritmos e cálculos para tentar detectar se aquilo se trata de uma arritmia maligna, benigna ou mesmo apenas a taquicardia normal do dia-a-dia (porque a pessoa está correndo, por exemplo).
Se o aparelho achar que aquilo é uma arritmia maligna, então ele vai iniciar um protocolo (previamente configurado pelo eletrofisiologista) que pode começar com uma curta estimulação mais rápida que a própria arritmia (para quebrá-la) ou já com o choque.
O choque é a aplicação de uma carga também configurável (em geral 36 J) que vai da bateria até o eletrodo.
Se, enquanto o aparelho fazia seus algoritmos, o paciente desmaiou, então ele não sentirá o choque.
Caso esteja acordado, a sensação é de um forte solavanco no peito.
As diretrizes recomendam implante de CDI em pacientes recuperados de morte súbita por ritmos chocáveis, pelo risco de apresentarem novo episódio.
Em outras palavras, o CDI é como se uma pessoa andasse com um desfibrilador externo automático (DEA) do seu lado o tempo inteiro.
Após uma morte súbita abortada (caso do Eriksen - reveja meu tweet em que explico isso), a equipe precisa:
- Entender o que causou o problema;
- Tratar isso;
- Estudar se o CDI será realmente necessário para protegê-lo de novos episódios (quase sempre é).
Se for indicado, a continuação no esporte será bastante complexa e eu vou elencar aqui 3 fatores a se discutir entre médicos, Eriksen, clube e patrocinadores:
- Risco do aparelho sair do lugar
- Risco de choque no jogo
- Risco do esporte piorar seu quadro
- Risco do aparelho sair do lugar:
Vôlei, por exemplo, está formalmente contra-indicado, porque o movimento brusco dos braços pode tirar o aparelho e os cabos do lugar de implante, perdendo seu funcionamento e levando a riscos.
Na figura, o eletrodo está fora do coração.
Futebol não usa o braço na maior parte do tempo (exceto goleiros e cobranças de lateral). Mas, mesmo assim, é um esporte de contato e está predisposto a um grau de movimentação e risco de impacto torácico maior que o desejável para quem tem esse aparelho.
- Risco de choque no jogo
O choque pode acontecer de maneira apropriada (caso o jogador volte a ter morte súbita) ou inapropriada (quando os algoritmos interpretam errado o ritmo).
Com o natural aumento da frequência cardíaca durante a atividade física, isso pode iniciar o algoritmo do aparelho várias vezes durante a partida. E em uma (ou algumas) delas, o aparelho pode errar sua interpretação e entregar um choque inapropriado.
Além de ser constrangedor ao atleta, isso pode ser muito dramático para os esportes.
Em um registro europeu publicado no ano 2000 com atletas competitivos e recreacionais, 20,2% dos atletas competitivos tiveram choque durante atividade x 6,3% dos atletas recreacionais.
Provavelmente foi o que aconteceu com Daley Blind, ex-Manchester Utd e Ajax no ano passado. Ele tem um CDI e tentou, sob meu ponto de vista, de maneira irresponsável, voltar a jogar.
A notícia que o "desfibrilador desligou" é desinformativa. Ele deve ter recebido terapia do CDI.
- Risco do esporte piorar seu quadro
Há algumas doenças de difícil diagnóstico e que paradoxalmente pioram ou engatilham o problema quando o portador pratica esportes. Displasia do VD e QT longo congênito são dois exemplos.
A investigação que começará agora por parte dos eletrofisiologistas de Eriksen envolve buscar essas doenças. Mas como disse, o diagnóstico é difícil. E, caso ele fique sem diagnóstico preciso, não se pode descartar essas causas.
Continuar seria maléfico para ele.
Pelo talento e carisma do jogador, a torcida é que tudo fique bem e que, de maneira responsável, os médicos que cuidam do caso tomem a conduta mais prudente e acertada.
Correção: * o CDI pode ser implantado dos dois lados, não apenas do lado direito. Escolhemos o lado baseado em diversos fatores, entre eles a preferência do paciente e qual a sua mão dominante.
Correção 2: o registro europeu é de 2020.
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O jogador dinamarquês Christian Eriksen não teve uma convulsão. O que ocorreu foi uma morte súbita. E, devido ao rápido atendimento, essa morte súbita foi "abortada".
Fiz esse fio para explicar.
Morte súbita é aquela inesperada, que ocorre até 1 hora após o início dos sintomas (no caso de Eriksen, foi instantâneo).
13% das pessoas morrem subitamente. 50% das pessoas que morrem do coração morrem subitamente.
No esporte, ocorre 0,5-2,1 morte súbita por 100 mil pessoas/ano
O coração de uma pessoa só pode parar de bater em 4 ritmos cardíacos:
- Fibrilação ventricular e taquicardia ventricular sem pulso
- Atividade elétrica sem pulso e assistolia.
As duas primeiras são ritmos "chocáveis", ou seja, respondem à desfibrilação.
Pra coroar o lançamento do livro “Manual de MBE”, eu e a Sanar montamos uma jornada IMPERDÍVEL com muita gente boa pra falar de ciência, evidência científica de qualidade, comunicação em ciência e tentar traçar alternativas pra melhora do nosso ensino. Segue o fio:
A live com a @TaschnerNatalia (Natalia Pasternak) já passou (foi dia 31/05, mas você pode rever em meu IGTV). Falamos sobre incerteza, evidências boas e evidências ruins..
No dia 04/06/2021, receberei a querida @luizacaires3 (Luiza Caires), jornalista e editora do Jornal da USP.
Vamos falar de jornalismo de ciências e divulgação de evidências científicas com responsabilidade.
Marca aqui seus amigos jornalistas!
Tom é um homem de 58 anos que vivia uma vida desregrada.
Certo dia, teve dor torácica intensa irradiando para os dois braços. Como a dor não cessou espontaneamente, pegou um Uber até o hospital. Ao chegar lá, esse era o ECG:
Ao ver o ECG, o médico descartou Infarto com supra e indicou Dipirona.
Mal sabia o médico, mas Tom tinha uma oclusão coronária aguda total de uma das suas artérias epicárdicas. E o médico não considerou a hipótese de falso negativo.
Vamos aprender a nunca cair nessa armadilha?
Para a resolução desse caso, preciso lembra-los que a Medicina é uma ciência probabilística.
Ao entrar em um PS com dor torácica, a probabilidade de haver uma isquemia aguda (não necessariamente OCA) é de 25% (dados de estudos prévios).
Com o anúncio do estudo ACTION, tivemos a confirmação que médicos de todo o mundo caíram mais uma vez no canto do mecanicismo. A anticoagulação é a "cloroquina socialmente aceita".
Vamos entender a razão pela qual tantos médicos e leigos caíram nessa pegadinha cognitiva.
1. É plausível, mas nem tanto.
A anticoagulação profilática ou terapêutica é uma das terapias mais difundidas da Medicina. Tão difundida que parece ter fortes evidências do seu uso.
Mas não é bem assim.
1.1 O pontapé inicial da anticoagulação para TEV/TEP veio em 1960 com um estudo não-cego, não-randomizado, sem confirmação diagnóstica, interrompido precocemente.
"Ah, mas há outros trials depois desse..." você diria.
Seu Ednaldo, 58 anos, funcionário de uma emissora de TV, dá entrada no PS por "síncope".
Foi solicitado um CATE e o paciente recebeu um stent (lesão entre 70 - 90% na DA).
Mas ele não infartou e o stent foi mal indicado. Quais erros e vieses cognitivos foram cometidos aqui?
1o erro: "garbage in, garbage out". Assim como em uma meta-análise, se os dados que você recebe são lixo, sua interpretação também será um lixo.
Em uma conversa mais detalhada, Ednaldo conta que teve uma sensação que ia desmaiar e ficou fraco. Não perdeu a consciência.
2o erro: "negligência da taxa base". É o viés cognitivo presente quando o médico não pratica o raciocínio clínico bayesiano. Isso se faz quando o médico ignora o paciente, passando a interpretar apenas o exame.
Meta-análise da Nature conclui que a Hidroxicloroquina pode estar associada a uma maior letalidade e Cloroquina não tem efeito.
E por que devemos acreditar nela e não na c19study? Por que acreditar nela e não no seu médico leigo? Segue o fio.
A meta-análise, de acordo com o novo conceito de pirâmide fluida da MBE, é como uma lupa. Ela é usada para amplificar o resultado de diversos estudos. Quando apontamos uma lupa para o lixo, amplificamos lixo. Quando apontamos uma lupa para estudos de qualidade, obtemos respostas.
Matemáticos e médicos sérios não precisam usar de métodos estatísticos não aplicáveis para convencer ninguém. Não há paixão por uma causa, nem viés político ou financeiro. Há sim a busca pela melhor evidência. Agora vejamos como alguém sério faz uma meta-análise.