O mito do médico "experiente", mas que na verdade é um mecanicista..
O médico mecanicista é aquele que acha que conhece o efeito clínico de uma droga apenas por conhecer seu suposto mecanismo.

E esse método, apesar de agradável aos leigos, é ultrapassado. Segue o fio.
O conhecimento de como o corpo humano funciona e como os medicamentos atuam nele é mais nebuloso do que se imagina.

Na verdade, revistas de fisiologia, farmacologia e demais ciências "básicas" ainda são publicadas periodicamente trazendo suposições e novidades.
Não se publicam revistas sobre suposições de novas ruas na cidade de São Paulo porque isso é relativamente simples: um ser humano vai lá e constrói. Tudo registrado. Não há suposições a se fazer sobre isso.

Não fomos nós que construímos o corpo humano. Por isso a dificuldade.
O médico mecanicista é aquele acha que com o conhecimento que tem sobre o corpo, já é suficiente para dar diagnósticos e eleger tratamentos. Pacientes adoram explicações lógicas e convincentes.

Só tem um problema: o mecanicismo morreu.
O mecanicismo tem diversos problemas e exemplos negativos:
- O mecanismo atualmente aceito pode estar errado (a teoria dos humores da sangria, p. ex).

Em 300 anos, exibirão gráficos do Harrison em posts sobre algo que se provou errado. E você é pouco humilde se pensar que não.
- O diagnóstico proposto precisa estar correto. E nas mãos de um médico mecanicista, ele quase nunca está, pois ele não entende de probabilidades.

A Medicina Baseada em Evidências, matéria que faz contraponto ao ultrapassado mecanicismo, é que ensina médicos a fazerem isso.
- Raramente, um médico pode afirmar que curou ou até mesmo que melhorou um paciente. Isso porque a Medicina é probabilística (outro contraponto moderno à velharia mecanicista).

Um paciente tem probabilidades de melhora e piora. Medicamentos aumentam-nas, reduzem-nas ou nada.
Como o médico não consegue enxergar essas probabilidades, observando apenas o desfecho, qualquer conclusão que ele tirar sobre aquele evento será provavelmente falsa.

E assim ele adquire seus cabelos brancos: através de conclusões falsas. É o mito do médico experiente.
Deste último tópico, se vê por que tantos médicos ditos "experientes" caíram no conto da cloroquina e ivermectina.

O mito do médico experiente não poupa idade, brasão no jaleco, currículo, preço da consulta ou decoração do consultório. Atinge até pesquisadores.
A MBE é a arma para quem quer interpretar exames clínicos de maneira correta e também calçar as sandálias da humildade. Desta vez, tratará não como um Deus onisciente, mas como alguém que está ao seu lado, oferecendo probabilidades de melhora quando elas existirem verdadeiramente
É ok que um médico seja mecanicista? Às vezes o dano é menor pq algumas sub-profissões médicas são puramente técnicas. E que bom que são, porque leva tempo para adquirir a habilidade naquilo.

Esses profissionais se sentem menos motivados em se atualizar pelo trabalho repetitivo.
E também porque há algumas sub-profissões médicas em que o resultado é mais imediato e identificável, especialmente as especialidades cirúrgicas.

Deixo claro que a MBE é igualmente importante para esses, até porque também possui bases probabilísticas.
O mecanicista não tem culpa. A MBE ainda é uma disciplina pouco difundida. O médico recém-formado em 2021 que teve aulas clínicas sobre isso pode se considerar um sortudo.

A maioria nem tem MBE no currículo. Quando tem, é um decoreba chato em uma cadeira pra cumprir tabela.
Isso significa que a maioria dos médicos está despreparada para:
- Interpretar exames
- Avaliar respostas de pacientes a tratamentos
- Aprender sobre um novo tratamento

Digo isso sem exageros. E lamento profundamente porque esses são pilares da nossa profissão.
Além da tragédia criminosa que foi a crença no "tratamento precoce", a Medicina mecanicista já fez mais vítimas:
- A flecainida, um medicamento que tratava arritmias, estava, na verdade, aumentando o risco de morte dos seus usuários. Médicos não perceberam, como nunca percebem.
Quando um paciente usuário da flecainida não voltava ao consultório, o médico só achava que ele morrera "de outra coisa" ou que não tomou o remédio direito.
E o raro paciente que não usava flecainida e morria era entendido como "tá vendo só? Morreu porque não tomou.
Sem comparar os desfechos entre quem usa e quem não usa o medicamento, não há como conhecer essas probabilidades.

A Medicina é probabilística. Ponto final.

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29 Sep
O estudo da Prevent Senior já era inexpressivo antes de ser comprovado fraudulento.

Serviria, no máximo, para imprimir e usar as folhas para acender lareira. Esse fio lista as razões e também o grau de dificuldade de percebê-las.
1. É um estudo observacional. Isso significa que os pacientes não foram incluídos nos grupos por sorteio - maneira justa que reduz incidência de vieses e fraudes.

Observacional não tem poder de determinar eficácia de terapia nenhuma.
Nível de dificuldade: fácil
2. Não foi de pacientes com covid. Isso mesmo. O estudo cita que foi de pacientes com sintomas gripais que ligaram pra telemedicina da Prevent.

Esse critério de inclusão determina que nenhuma conclusão pode ser feita sobre covid.
Nível de dificuldade: fácil.
Read 12 tweets
25 Sep
Por que tantos brasileiros acreditaram no conto de fadas de tratamentos que nunca foram sequer promissores? Por que vc ponderou se deveria tomar isso? Por que tantos médicos e convênios se aproveitaram de você para enriquecer?
Fiz esse fio com algumas razões dessa ilusão coletiva
1. Você acha que toda doença tem um remédio.
A famosa frase "esse doutor é ruim, não passa nada" leva médicos a prescreverem algo mesmo que não haja necessidade pra garantir satisfação. O paciente e o médico (leigo) acham que houve benefício mesmo que o nada já fosse suficiente.
2. Como os médicos (leigos) nunca ponderam que um exame pode ser falso positivo ou falso negativo, é passada a falsa impressão que sempre acertamos tudo.

Leigos têm facilidade de reconhecer os falso negativos. Quase nunca reconhecem os falso positivos, igualmente danosos.
Read 11 tweets
15 Sep
Em Medicina, existe uma limitação poucas vezes confessada em consultório (porque isso quase que invariavelmente se traduz em demonstração de fraqueza): é que esse é um ofício de incerteza.

Nesse fio, eu discorro sobre a natureza probabilística da Medicina.
A Medicina é uma ciência da incerteza porque:

1. Trabalhamos com incerteza na interpretação de exames
2. Trabalhamos com incerteza na interpretação da resposta dos pacientes às terapias

Vou explicar ambos.
1. Incerteza na interpretação de exames:

Nas mãos de um médico minimamente bem formado, a interpretação de um exame não é “positivo x negativo”, mas “verdadeiro x falso positivo, verdadeiro x falso negativo”.
Só isso já acrescenta uma camada de dificuldade maior à profissão.
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14 Sep
Um congresso on-line com várias autoridades discutindo diferentes aspectos da Medicina. Esse é o Sanarcon 2021. E vai acontecer esse sábado, 18 de setembro.

Vou elencar aqui algumas razões para você, médico ou estudante, não perder esse congresso de altíssimo nível. Segue o fio.
A querida Natalia Pasternak (@TaschnerNatalia) vai falar sobre "Ciência no cotidiano", tema que dá nome a um dos seus livros.

Ela vai trazer razões pelas quais nós devemos ser críticos e educados quando analisamos evidências científicas.
Seguindo a mesma linha, Luis Correia (@LuisCLCorreia), uma verdadeira inspiração para mim e muitos outros médicos, falará sobre a "Incerteza na Medicina".

Esse é um tema da maior importância, visto que nossa ciência é uma arte de probabilidades e não há como fugir disso.
Read 10 tweets
13 Sep
O curioso caso dos exames que não servem para nada.

Fiz um quiz no twitter em que perguntava para que serviam exames com esses perfis de acurácia:

Bem, esses exames não servem para NADA, literalmente. E eu vou te mostrar a razão nesse fio.
"Mas, professor, eu fui ensinado que um teste sensível descarta e um específico confirma uma doença"
"Até caiu na minha prova de residência..."

Você foi ensinado errado e as provas de residência são desconectadas da realidade (desculpa ser eu a te dar esse toque).
"Lá vem você falar que sensibilidade e especificidade são inúteis, quando, na verdade, elas que calculam a razão de verossimilhança que você defende"

Sim. Porque útil é a razão de verossimilhança.
Sensibilidade e especificidade não só são inúteis, como atrapalham ao confundir.
Read 19 tweets
5 Sep
Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.

Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.

Sensibilidade e especificidade não são úteis para o médico.

O médico que só trabalha com esses valores está despreparado para exercer raciocínio clínico.
Vamos a uma enquete em que isso se provará verdade:

1. Sabendo que a especificidade do ECG para diagnosticar oclusões coronárias agudas é 97%, qual a probabilidade de uma pessoa aleatória ter supra de ST e não ter infarto?
A resposta correta a essa pergunta é “impossível saber” por conta de um simples fato:

- Sensibilidade e especificidade partem de um dado que o clínico, na maioria das vezes, não sabe:

Quem é doente? Quem não é doente?
Read 14 tweets

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