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tá, esse eu termino MESMO.
1 like = 1 fato/curiosidade sobre como é morar em uma favela no Rio.
01. Elevador é quase um templo mesmo. Todo dia eu subo, mais ou menos, 21 andares de escada. Qualquer ida ao asfalto tem que ser bem programada pra evitar essa malhação obrigatória. A parte boa é que tu fica com uns pernão e a bunda firme.
02. Existem outras formas de acessar as partes mais altas do morro. Moto-taxi e Kombi geralmente te deixam na porta do terreno da sua casa, mas, mesmo assim, ainda te aguardam uns 8/9 andares de escada até chegar na sua cama.
03. Os morros do Rio de Janeiro, especialmente os da Zona Sul, se formaram na encosta de estradas que ligavam os bairros ricos antes do aparecimento dos túneis na cidadde. A Rocinha fica na Estrada da Gávea. O Tabajaras na Ladeira de mesmo nome que liga até Botafogo.
04. Falta água pra CARALHO. Em média, uma vez por semana, é norma ficarmos sem água por um dia inteiro, talvez dois. Aqui em casa guardamos um galão cheio de água potável pra esses momentos.
05. Houve um tiroteio em setembro passado e uma bala atingiu um transformador. Desde então, dia sim/dia não eu não tenho energia no horário de pico (19h-22h). Toda manhã a Light vem e ajeita, mas nunca mais tive energia como antes.
06. Falando em energia, eu não pago uma conta de luz. Não sei quem paga. Algumas pessoas no morro costumam pagar, mas acho que a Light faz vista grossa porque o custo de refazer a fiação de qualquer favela seria algo desproporcional com a receita extra de algumas famílias.
07. Chegam cartas aqui em cima. Encomendas, pacotes e até alguns malucos do Rappi tem coragem de subir pra entregar uma comida. Mas Uber não entra em favela nem por um caralho. Só sobe taxista e que, geralmente, mora aqui no próprio morro.
08. A Boca de Fumo fica a 100m de distância da UPP. Existem tiroteios ocasionais quando a Corporação manda fazer operação aqui no morro. Geralmente ninguém morre, nada é apreendido. Só a vida do morador que fica um inferno por algumas horas sem saber se pode sair de casa ou não.
09. Falando em Boca, é comum qualquer morador do morro ver uma arma de guerra a cada dois dias. O vizinho do prédio ao lado é do tráfico e várias vezes tive que desviar dele na escada, daquela forma bem awkward, pra ele conseguir passar com a metralhadora dele.
10. Sabe aquela lei que diz que forças policias só podem entrar na sua casa com um mandato de busca e apreensão ou se forem convidados a entrar? Pois é. Not quite like that. O cara chega na sua porta, com uma metralhadora do tamanho do seu corpo, e pede licença pra vistoriar.
11. Você tem a opção de dizer não pra um cara que tá com uma metralhadora no colo e uma pistola destravada na mão... OOOOOOU, você educadamente aceita a visita inesperada as 5 da manhã.
12. O uso de maconha no meio da rua é algo extremamente comum da boca de fumo pra cá. Da UPP pra lá que todo mundo é mais discreto e usa suas drogas em casa.
13. Existem dois dias pra os cultos evangélicos aqui no morro. Quartas, não sei por que, e sábados, horas antes do baile começar. A ideia é manter o fiel longe da putaria. Só no pedaço que eu moro dá pra contar 12 cultos diferentes em 200/300m de rua.
14. O baile inclusive costumava ser na quadra da escola de samba daqui do morro, a Vila Rica, mas depois da UPP mudou pra o meio da rua. A festa começa 21h e termina quando um traficante fica puto e dá uma rajada de tiro pra cima pra acabar a festa.
15. Sabe aquela galera que você vê vendendo coisas na Praia de Copacabana/Ipanema e São Conrado? Então, grande maioria mora nos morros desses próprios bairros. Todos os barraqueiros, os que vendem empanada, essa galera toda opta por morar perto de onde trampa.
16. Talarico morre cedo aqui. Mesmo. Deu em cima da mulher errada: já era.
17. Mulher é vista como propriedade do homem e se o cara trai sua esposa com outra, geralmente há um frisson pra espancar a amante. Os homens fazem parte da turma do "deixa disso" e os casos não evoluem pra porradaria generalizada.
18. Nas áreas seguras de qualquer morro na Zona Sul, o alguel geralmente é de R$1000,00. Na área entre a Boca e a UPP, o aluguel chega até R$450,00. Isso considerando que é tudo a mesma rua e o mesmo tipo de apartamento: kitnet.
19. Quase nenhum morador do morro tem casa própria. Grande maioria aluga de proprietários que, quase sempre, moram no asfalto com a renda dos aluguéis. Qualquer fisiocrata teria um treco em um morro do Rio de Janeiro.
20. Isso inclusive dificulta remoções de favelas. O dono do imóvel recebe uma remuneração porca do estado, o locatário entra naquele auxílio bizarro que não paga um aluguel no Rio e o comerciante do morro perde sua única fonte de renda.
21. Meu serviço de internet custa R$60. São 3MB, a conexão é boa, o wi-fi, fornecido pela empresa, é bom. Os caras cabearam duas ruas e criaram um negócio sustentável. Mais um MEI de sucesso que teve que colocar "fabricante de geléia de mocotó" na ficha cadastral do governo.
22. Existe uma associação dos moradores, mas desde que o tráfico dominou esse lado do morro, ela perdeu grande parte da importância que tinha em fazer políticas públicas concretas pra os moradores da região.
23. In case you're wondering: em uma operação, com 30 homens da polícia, você acaba com o tráfico onde eu moro. Mas é mais estratégico manter a boca aberta, os tiroteios constantes e uma apreensão aqui e aculá pra amontoar a estatística.
24. É foda subir escada bêbado, viu. Qualquer rolê no asfalto tem que ser estrategicamente montado pra eu não subir essa escada as 3 da manhã alcoolizado.
25. É proibido roubar aqui no morro. Tenho um notebook, três câmeras fotográficas, uma smart tv e já cansei de sair de casa e não fechar a porta com chave por ter certeza absoluta de que não serei assaltado.
26. A única vez que fomos assaltados foi quando a polícia invadiu aqui em casa. O vizinho tinha um pitbull, havia uma denúncia de que alguém do tráfico tinha esse cachorro e morava perto de mim. Arrombaram a porta e o dinheiro do aluguel tava na mesa. Levaram e foda-se.
27. Demorou três meses até voltarmos a pagar o aluguel regularmente. Demorou sete meses até comprarmos uma porta nova. Sete meses de porta arrombada e não fomos assaltados por nenhum vizinho. A sensação de comunidade, alheio à lei do tráfico, faz um milagre, rapaz.
28. O dia mais seguro pra subir o escadão a noite é no sábado. A classe média do bairro inteiro tá subindo junto contigo. Eles tão indo pra o baile e eu voltando do bar.
29. Sou branco, visto roupas de classe média e já cansei de ser abordado por gente do tráfico achando que eu queria ir na boca comprar algo. Aí sempre vem aquela explicação confusa de que na real eu sou um morador também.
30. Forças policias geralmente tratam o morador com boçalidade. Ninguém é obrigado a ser educado com alguém, mas se você tá lutando uma guerra cultural, esse tipo de iniciativa não ajuda em nada. Gente do tráfico costuma ser educado. Coisas simples que devem ser modificadas.
31. É normal encontrar crianças que não são matriculadas em nenhuma escola, nem mesmo a pública. Muitas vezes os pais são relapsos e perdem as datas de matrícula, não levam a criança à escola e por aí vai. Tempo fora da escola é tempo brincando numa rua dominada pelo tráfico.
32. Por isso é especialmente emocionante quando alguém da favela se forma e consegue entrar numa universidade. Raros são os colegas de rua que conseguem fazer essa trajetória se concretizar.
33. No morro onde eu moro quase todos os meus vizinhos são gringos. Claro que tem o viés de ser em Copacabana, mas a maioria é argentino. Tem alguns do oriente médio também que se mudaram pra cá recentemente, especialmente Síria.
34. Isso leva a um intercâmbio cultural interessante. River campeão da libertadores e tinha um bandeirão do time hasteado na casa de um gringo. Alguns fazem empanadas argentinas pra vender na praia e fazem promoção pra vizinho. Globalização é top demais, viu galera.
35. Comprar móveis novos e fazer mudança pra outra casa tem que ser extremamente bem planejadas. Você não vai querer carregar uma geladeira por doze lances de escada por nada.
36. Isso leva ao lixo comunitário. Muito comum um vizinho se livrar de um móvel ou eletrodoméstico que não quer mais, jogar perto da caçamba de lixo e, alguns minutos depois, outro vizinho pegar o móvel pra si e reaproveitar na própria casa.
37. Onde eu moro só tem flamenguista e vascaíno. Tem uns trinta botafoguenses, no máximo, um tricolor e um americano. O Flamengo e o Vasco são populares pra caralho, bixo.
38. Se você sair de casa com uma camisa do Botafogo ou Fluminense e tiver menos de cinquenta anos, tenha certeza: vai ser escarneado do primeiro degrau ao último pelos moradores.
39. Existem três restaurantes japoneses no morro, cinco locais que entregam pizzas de qualidade bem razoável, algumas boas lojas que fazem cento de salgado. É uma parada meio gentrificada, mas pelos próprios moradores do morro. É bizarro.
40. Morar na favela te dá uma sensação de passe livre de segurança nas ruas adjacentes ao morro. Sei que se alguém tentar me assaltar, provavelmente é morador também e eu sempre sinto que dá pra meter um esculacho no cara e fazer ele desistir de me assaltar.
41. Parece inocente, mas uma vez meu tio se livrou de um assalto no asfalto falando que morava no Tabajaras. O cara ainda saiu pedindo desculpas. Sentou atrás de uma moça lá na frente e assaltou ela pra não sair no zero a zero.
42. A Internet não paga tributo ao tráfico, mas o serviço de TV a Cabo paga. Eu não entendo a ética dos caras as vezes, só é assim mesmo e acabou.
43. A "boca" em si não é aquela casa escondida no meio da favela que poucos sabem onde fica. A boca é uma mesa de sinuca na frente de um bar desativado. A mesa de sinuca é o mostruário dos produtos. O bar é o estoque.
44. Existem vigias do tráfico espalhados pelo morro todo. Já contei 16/17. Na UPP existem três policiais. Dois dormem num container ao lado da UPP e um fica de vigia.
45. Existem "favela tours" ainda, são mais raros. Hostels na entrada de favela são mais comuns e costumam estar sempre cheios pelos preços atrativos e a oportunidade da Antropologia Casual TM.
46. Quando falta luz o meu wi-fi desconfigura e sou obrigado a ir até a empresa de internet. O escritório dos caras fica entre a boca e a UPP. O cagaço de andar com um wi-fi preto, com duas antenas enormes, e ser confundido por uma pistola; é enorme.
47. Não existe morador de rua aqui em cima. Existem alcoolatras que moram em bares (real). Recebem aposentadoria e gastam quase toda no bar, geralmente pedem comida pra os moradores do terreno e moram de favor.
48. Antigamente existia mais preconceito com as pessoas que moravam no morro. A cada dia que passa, eu vejo diminuir um pouco. Talvez esse seja o único legado positivo das UPP's: mostrar que até dá pra ter um morro seguro e uma população integrada à sociedade.
49. Os meninos do tráfico não são que nem o "Baiano", "Nem", "Fernandinho". Geralmente são uns moleque magrin, sem camisa, entre 17 - 25 anos. Um cara que realmente podia estar em tanto lugar, mas tá ali, carregando aquela arma, numa guerra sem sentido.
(ÚLTIMO FATO PQ NÃO DÁ PRA FAZER 200 E BLAU)

50. Toda favela remete a uma cidade de interior. Há um senso de comunidade e respeito patriarcal. Crianças brincam na rua, idosos sentam nas calçadas. Tem quem mora aqui e não quer sair. Tem quem mora aqui e só quer sair.

É isso.
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