Thread by @louverture1984

Sobre o desfile da Mangueira, fiz um fio para explicar para as pessoas algumas coisinhas sobre "a história que a História não conta":

1) Nos últimos anos, num movimento cada vez mais comum entre professores, alguns mitos da História oficial foram desmontados.

2) Eu não me refiro com isso ao jornalista que fez os "guias politicamente incorretos", livros manuais cheios de erros factuais e absurdos teórico-políticos. Esse tipo de publicação queria apenas voltar à História tradicional - falar de vencedores e sabotar a memória dos vencidos

3) Sabotar essa memória significa botar dúvida sem ter evidência pra sustentar a afirmação. É dizer que Zumbi era escravista; ou que a Inglaterra é que acabou com a escravidão; ou que João Goulart era um corrupto.

4) Por outro lado, se reforça a narrativa tradicional: a história dos grandes homens. Mas se desloca o grande homem e ele volta a ser figuras como Duque de Caxias (genocida), D. Pedro II (monarca escravocrata), ou os ditadores militares.

5) Daí a importância do que a Mangueira fez na Sapucaí: vou contar a história pelo seu avesso. Denunciar os inimigos das causas populares, mostrá-los como pequenos, minúsculos, figuras medíocres e que foram alçadas à condição de mito.

6) Ao mesmo tempo, conta também a história de "negros, índios e pobres", os de baixo, os subalternos, aqueles que foram massacrados com o tempo. Recupera aquilo que Walter Benjamin chamou de "a tradição dos oprimidos". E esse é um termo muito bom pra entender o rolê.

7) Tradição geralmente remonta a ideia de um passado a ser preservado. Existem inclusive centros de tradições, que tem como objetivo a reprodução de uma forma cultural do passado. Mas essas costumam ser formas culturais bastante dominantes.

8) Quem é gaúcho, p. ex., sabe que boa parte do tradicionalismo remonta a tradição dos latifundiários charqueadores acima de tudo. E que o tradicionalismo em Pernambuco remonta muito do estilo de vida dos antigos latifundiários da cana.

9) Logo, falar em "tradição dos oprimidos" significa olhar para o passado com os olhos de quem não tem muito a ganhar olhando para o passado. Porque foi um passado de derrotas. Por que rememorar então? Simples: resistência.

10) Resistência é essa palavrinha que parece estar na moda, mas na verdade carrega consigo a potência de ter sobrevivido para contar a história por outro lado. As grandes praças, os grandes monumentos, todos retomam a grandeza dos vencedores.

11) Mas por trás de cada monumento, cada avenida, uma história subjacente se levanta, a história de quem perdeu. E a cada derrota, histórias de resistência surgem. Os heróis, os grandes nomes, foram contestados em seu tempo. Seu mito é frágil.

12) Quando a Mangueira leva isso para a avenida leva não a "forma certa" da História. A História carrega consigo muitas histórias. Mas quais nós vamos contar diz muito sobre nosso lugar no mundo. Que passado você quer lembrar? Que passado você quer contar?

13) Você quer a história de mitos infalíveis e fantasiosos, dos genocidas que ganhavam condecorações, dos imperadores auto-proclamados, das Barbies fascistas do século XIX? Bem, isso diz muito sobre você e o seu lugar no mundo...

14) Há uma série de outras histórias a serem conhecidas. Daqueles que não se calaram, daqueles que não aceitaram os abusos, os massacres, o cinismo... Se essa é a história que vocês querem contar e lembrar, tenho certeza que o seu lugar no mundo é o mesmo que o meu.

15) E a gente tá bem acompanhado pra caramba a partir desse samba da Mangueira, podem ter certeza.