Thread by @horacioneiva

Mta gente está contribuindo para que o 31/03, dia do #Golpede64 , não se transforme num pretexto para um revisionismo histórico bocó. Como a minha área é a teoria do direito, vou tentar contribuir respondendo ao Eduardo Bolsonaro, que disse que não foi golpe.

Spoiler: foi sim.

O argumento (se podemos chamar assim) é que 64 não foi golpe porque (i) a população queria; (ii) houve eleições indiretas; (iii) tudo foi feito para evitar a implantação de uma ditadura comunista.

Embora haja elementos políticos no conceito de “golpe” (de modo que os argumentos i e iii pudessem ser relevantes) a literatura, em geral, utiliza um aspecto formal para defini-lo (que pode ou não ser complementado por considerações normativas.

A explicação mais tradicional para o conceito de “golpe” é de Hans Kelsen, que trata do tema tanto na Teoria Pura do Direito quanto na General Theory.

Aqui, na General Theory, Kelsen diz que toda revolução de sucesso (isto é, que consegue se tornar eficaz) altera a ordem jurídica (em outras palavras: há descontinuidade e, portanto, golpe).

Na Teoria Pura do Direito, Kelsen apresenta a definição clássica de revolução - na qual expressamente inclui o coup d’etat [o golpe de estado] - como uma mudança constitucional ilegítima (i.e., de forma não prevista na Constituição)

Um dos artigos mais importantes sobre golpes de estado é o do Tayyab Mahmud (Jurisprudence of Successful Treason). Nele, consta uma crítica a Kelsen e uma diferenciação entre revolução e coup d’etat.

Pro Mahmud, a revolução é mais drástica que o coup d’etat. Este último é definido como uma tomada de poder extra-constitucional (que pode não extinguir a ordem jurídica)

Em um outro artigo clássico sobre o tema, o Revolutions and Continuity in Law, do John Finnis, ele considera essa distinção entre Revolução e Coup D’etat — e considera ela problemática

Percebam que, em todos os casos, há quase unanimidade em considerar que toda tomada de poder extra-constitucional é um golpe. A questão é simplesmente saber se esse golpe inaugura uma nova ordem jurídica ou não. Pois bem.

Se vocês consultarem o Ato Institucional nº 1, que inaugura o regime, vão perceber que os Militares não tiveram vergonha de dizer, expressamente, que (i) se tratava de uma Revolução e (ii) que estavam inaugurando uma nova ordem jurídica

Na prática, os militares admitiram que 64 foi mais do que um coup d’etat, foi - literalmente - uma revolução que inaugurou uma nova ordem jurídica [é possível investigar as influências kelseniana e/ou schmittianas nessa discussão, inclusive].

E percebam que o AI nº 1 teve que afirmar que a Constituição de 1946 seria mantida. Isto é, na medida em que os próprios militares reconheciam que se tratava de um golpe, sabiam que, formalmente, a Constituição deixava de valer.

Observem, também, que a validade da Constituição ficou condicionado aos pontos em que ela era compatível com as demais determinações do próprio Ato. Kelsen trata disso como um ato de “recepção”.

Em resumo: (i) os militares consideravam que era um golpe; (ii) a literatura sobre o tema considera que foi um golpe; (iii) foi um golpe. Se o Eduardo Bolsonaro não sabe isso, sugiro que volte pra faculdade porque deve ter faltado essa aula na graduação.

Pra vocês terem um pouco de contexto: no pós-guerra, o tema da “revolução” e o estudo dos golpes de estudo ficaram em evidência por conta da devolução de poderes a ex-colônias e revoltas de independência. Há muita coisa sobre o tema - apesar de ser um assunto relativamente datado