Thread by @carapanarana

Em pleno Dia da Consciência Negra circulou bastante esse meme com uma frase que supostamente seria do Thomas Sowell. Não consegui encontrar a fonte dessa frase mas ela está no Wikiquote listada como "sem fonte". en.wikiquote.org/wiki/Talk:Thom…

Se não posso atribuir a Sowell essa frase, pelo menos é possível ter acesso a outros textos onde ele mostra opiniões parecidas e um revisionismo histórico muito superficial. dallasnews.com/opinion/commen…

Há também um meme que circula em vários circuitos de direita nos EUA afirmando que os Irlandeses teriam sido os "primeiros escravos" ou que teriam sido "mais escravizados" que os afro-americanos.

Liam Hogan (@Limerick1914) é um historiador irlandês que pesquisa memória da escravidão escreveu artigos a respeito de como esse meme é baseado em uma manipulação e descontextualização de imagens antigas. medium.com/@Limerick1914/…

Um dos temas recorrentes no revisionismo histórico atual é o de que a escravização de africanos nas Américas seria "trivial" na História da humanidade uma vez que: "africanos escravizaram outros africanos"; ou "a maioria dos povos já escravizou ou foi escravizada".

Os mais ousados dizem, ainda, que "não foram os europeus que inventaram a escravidão mas foram eles que a encerraram", ou pior que "os africanos foram escravizados por outros africanos e libertados pelos europeus".

Na discussão atual sobre racismo e "justiça social", a História se tornou um dos campos mais intensos de disputa. No Brasil onde a "história politicamente incorreta" encerra discussões com um "Zumbi dos Palmares era senhor de escravos", mesmo sem evidências, vamos mal.

A escravidão é mesmo um tipo de instituição comum ao longo da história da humanidade. Os primeiros registros escritos sobre a escravidão são da Mesopotâmia, no Código de Hamurabi, milhares de anos antes de Cristo.

Havia escravidão no Egito Antigo (os Hebreus que o digam!), e também em Roma e na Grécia. O Império Persa escravizava prisioneiros de guerra, mas não praticava a escravidão em larga escala.

A história da Escravidão na China é uma das mais interessantes. Documentos mostram que a prática foi abolida e reinstalada várias vezes. A primeira abolição total da escravidão vem de uma lei da Dinastia Xin do ano 9DC! A última lei foi de 1909. en.wikipedia.org/wiki/Slavery_i…

Povos europeus também foram escravizados por civilizações como o Império Bizantino (como bons herdeiros dos Grego-Romanos) e também o Império Otomano (que também escravizava africanos).

Em muitas partes da Europa Oriental, como onde hoje é a Rússia, a fronteira entre a servidão e a escravidão era tênue.

Algumas civilizações das Américas, como Incas e Astecas, também praticaram a escravidão.

Mas se a escravidão foi uma instituição tão disseminada na História da humanidade então porque falamos tanto sobre a injustiça da escravidão dos africanos nas Américas?

Um dos motivos está na escala do Tráfico Atlântico. A quantidade de pessoas deslocadas para da África para as Américas é estimada em 12 milhões, sem contar aqueles mortos durante as viagens (cerca em 2,4 milhões).

Essa conta não inclui aqueles que morreram em solo africano resistindo à captura, nem os descendentes dos africanos nascidos nas Américas.

Cerca de 12 milhões de africanos foram escravizados e trazidos para as Américas, seus filhos também foram escravizados. A escravidão era o motor das indústrias da América Tropical: intensivas e de larga escala.

Os indígenas americanos TAMBÉM foram escravizados pelos colonizadores e em grandes números. Mas a suscetibilidade à doenças nos primeiros séculos do contato fazia com que a captura de escravos fosse uma necessidade constante (ainda faço outra sequencia só sobre isso).

Aqui vai um vídeo/infográfico que todo mundo deveria assistir, uma história animada tráfico Atlântico baseado em documentos portuários sobre os navios que transportavam os africanos escravizados.
slate.com/articles/life/…

"Ah mas mas eles foram escravizados por outros africanos também". A instituição da escravidão em alguns reinos africanos era mais próxima da figura da servidão medieval. Outras vezes estava ligada à punição por crimes ou à guerras entre reinos e povos (cativos de guerra).

A introdução das armas de fogo na África muda isso drasticamente. Armas de fogo eram fornecidas pelos Europeus e trocadas por escravos que eram tomados de outros reinos. Para resistir às expedições de guerra de outros reinos era necessário ter armas de fogo... um ciclo vicioso.

A escravidão enriqueceu alguns reis no auge do Tráfico Atlântico, mas o a instabilidade instaurada ao longo dos séculos de intensificação bélica e morte em massa acabou causou o colapso desses mesmos reinos africanos.

A ideia poderosa da condição de igualdade da humanidade é gestada no Iluminismo Europeu. Apesar disso, abolição da escravidão nas Américas não ocorre como um processo de "concessão", mas se inicia com guerras e revoluções.

Na Guerra da Secessão nos Estados Unidos, os Confederados tinham a escravidão como instituição fundamental do país que pretendiam criar. Falavam na expansão da escravidão pela América Central, por exemplo.
theatlantic.com/politics/archi…

A escravidão é progressivamente abolida. A ideologia criada para a justificativa da escravidão dos africanos pelos europeus era de natureza teológica. Com o advento da ciência moderna essa ideologia logo se metamorfoseou no que chamamos de "racismo científico".

O chamado "racismo científico" foi responsável por um enorme número de políticas públicas criadas após a abolição da escravatura nas Américas. No caso brasileiro, isso é muito bem ilustrado na obra desses senhores, por exemplo.

Segregação racial, estimulo da imigração europeia para a promoção do "branqueamento" da população nacional, restrição de acesso à terra aos libertos, promoção de linchamentos públicos para manter os libertos sob controle. Tudo isso fez parte das Américas pós-abolição.

Além disso a luta por direitos plenos para as populações descendentes dos africanos escravizados foi gradual, tanto nas Américas quanto na África colonizada pela Europa (onde em muitos casos a guerra foi o único meio possível, e a instabilidade se seguiu).

Falar sobre essas assuntos é importante demais, sobretudo quando há uma indústria de revisionismo e trivialização da história. E como eu já escrevi antes: a "História alternativa muitas vezes é uma alternativa à História".

Essa indústria está no mesmo bolsão daqueles que consideram "Direitos Humanos" um empecilho à política e ressuscitam o "racismo científico" sob a desculpa do "ceticismo" e do "politicamente incorreto". tracinskiletter.com/2016/10/02/a-l…

Pois é. Gente como Stephan Molyneaux, celebrado debatedor de "libertários" e "conservadores" se rendeu à pseudociência racista, se consolidando no espectro da "direita alternativa" e celebrado por ela (com direito a post no American Renaissance).
amren.com/news/2017/11/s…

Talvez a lição aqui é a de que nunca devemos nos furtar a esse debate. Não se iludam com a ficção de progresso permanente. Olhos abertos, ouvidos atentos.

Não adianta trazer as inferências de Sowell, que não posso dizer se foram equivocadas ou desonestas, quando o espectro do racismo científico caminha no mesmo meio que o divulga!

PS: E não faz sentido dizer que Zumbi dos Palmares era senhor de escravos (video com o @prof_viaro ).

Celebrar Sowell como um 'ícone da libertação" diante de um Zumbi dos Palmares supostamente escravagista não faz qualquer sentido. Mas estamos numa arena de debates com pouca substância têm sido empunhadas como troféus e repetidas via memes.

O uso da "alternativa à história" para apagar o que foi escrito durante séculos de colonização, exploração da mão de obra escrava e segregação racial não vai nos ajudar a superar esses problemas.

Esqueci de mencionar a publicação em pleno 2017 de um artigo, num periódico científico, escrito por um professor de Ciência Política, que defendia não apenas o legado da colonização mas propostas de RECOLONIZAÇÃO.
currentaffairs.org/2017/09/a-quic…

Há também um vídeo do TEDEd que resume muitíssimo bem a história e o impacto do Tráfico Atlântico (com legendas em Português).

Sobre os assuntos tratados aqui recomendo as seguintes @'s
@tanehisicoates @Limerick1914 @prof_viaro