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Lembro bem de quando entrei no táxi e, após cumprimentar o motorista, pedir:
           
- O senhor me leva em Ipanema, na Rua Joana Angêlica, 97, um quarteirão antes da Lagoa.
           
- Sim senhor, vamos lá.
Depois de alguns minutos de silêncio, resolvi puxar assunto:
           
- E o trânsito, como está?
           
- Olhe... Está como sempre, ruim, ainda mais que vai acontecer um acidente logo, logo.
- Aconteceu um acidente?
           
- Não, vai acontecer um acidente.
           
- Como assim? Além de taxista o senhor é vidente também?

Rindo, ele respondeu - Acidentes sempre acontecem. O povo é muito imprudente no volante.
... Mas esse acidente de que lhe falei, que vai aconteceu, é porque estou com muito sono.

- Eita... Mas se o senhor está com muito sono, não é melhor dar uma parada?
           
- Mas não posso parar, estou no meio de uma corrida.
- Então termine a corrida, ué! Pare o táxi e pego outro, sem problema algum.
           
- Impossível, senhor. A verdade é que nunca lhe falei que estava com sono. Desde que o senhor entrou, fiz um esforço enorme para que não notasse que estava quase dormindo.
- Mas o senhor falou, acaba de falar que está com sono - respondi.
           
- Mas agora não adianta... Só adiantaria se tivesse falado enquanto estávamos vivos. Agora não adianta.
           
- Do que você está falando, maluco? Não houve acidente nenhum e nem estou morto!
- Houve sim... Infelizmente houve e, sim, estamos mortos. Cochilei por uns 5 segundos e entramos na traseira de um caminhão. Foi uma batida violenta.
           
- Mas que absurdo! Pare o táxi que quero descer.
           
- Vou parar, mas o senhor não vai conseguir descer.
Prontamente paramos no acostamento.
           
- Pronto, pode abrir a porta.
 
Minhas mãos não reagiram. Era como se estivessem chumbadas, impossibilitadas de movimento; como se meus braços não respeitassem a vontade do cérebro, ou como se forças desconhecidas agissem sobre mim
Por mais força que fizesse, estava paralisado.

Depois de algumas tentativas, desisti e falei:

- Não consigo abrir. Não consigo mexer minha mão para abrir a porta. O que está acontecendo?
- Por vezes, ficamos presos ao local ou à circunstância de nossa morte, ainda mais quando se trata de morte violenta.

- Mas não consigo entender... O senhor diz que tivemos um acidente e que morremos, mas não senti nada... Como é possível?
- Bem, eu estava dormindo, então certamente não percebi nada. Já o senhor, creio que morreu tão rápido que nem sentiu. Por vezes também não notamos as transições.
- Mas acabamos de sair da Barra, eu estava olhando a paisagem quando começamos a conversar... O senhor falou do acidente que sofreríamos e já estamos mortos?

- O tempo é bem relativo aqui. O senhor provavelmente lembra que foi assim, mas pode ter sido de outra forma.
- Então estamos mortos?

- Sim...

- Entramos na traseira de um caminhão e morremos na hora?

- Sim...
    
- E eu não consigo sair do carro? Estou preso?
           
- Como eu disse, por vezes ficamos presos à nossa morte e suas circunstâncias.
- E a Ísis? Eu ia buscar a Ísis para irmos ao aniversário do Paulo? Liguei dizendo que estava saindo da Barra...
           
- A Ísis vai esperar por cerca de uma hora, vai se irritar com sua demora e vai ligar para você, mas o celular quebrou na batida...
...ela vai achar que você esqueceu dela, ou que aprontou algo. Vai ficar braba, vai chamar um taxi e vai pra festa sozinha. Por volta de 22 horas seu pai vai ligar pra avisar do acidente.
           
- Que merda...
- Mas ela vai ficar bem. Todos vão ficar bem depois que você se for.
           
- E meu pai? Somos somente eu e ele no mundo. Ele vai ficar destruído sem mim...
           
- Sim, vai...
...mas uma hora ele vai se acostumar com sua ausência e com a dor... e vai aprender a viver sem você. Acredite, todos vão ficar bem após sua morte.
- Como você sabe disso? Parece tão sereno...
           
- Talvez eu não seja o taxista, seu companheiro de morte. Talvez seja somente alguém que está aqui, um reflexo do motorista, para te explicar as coisas e te dar um pouco de tranquilidade.
- Talvez o taxista, noutra realidade, esteja fazendo as mesmas perguntas, só que lá, na vivência pós morte dele, é você quem responde.

Estava atordoado pela enxurrada de informações, completamente angustiado com tudo aquilo, todas as respostas de vida e morte a meu dispor.
E, ao mesmo tempo, tinha milhares de outras perguntas a fazer, mas não tinha ideia de por onde começar.
           
- Sabe me dizer desde quando estou morto?
- Difícil precisar. É possível que o acidente tenha ocorrido faz uma hora, duas semanas, seis meses ou dez anos. É possível até que seu corpo ainda esteja entre as ferragens do veículo, esperando o resgate; ou seu corpo pode nem existir mais, já totalmente consumido pela terra.
- Isso é tão assustador. Então, posso estar nesta espécie de limbo faz anos?
           
- Exato...
           
- Mas, se posso estar morto faz anos, por que somente agora estamos tendo essa conversa? Por que só agora você resolveu me explicar isso tudo?
- Veja bem: o corpo foi criado para morrer, uma máquina engenhosa que, tal qual mecanismo fino e delicado, um dia simplesmente sai do eixo e pára. Mas a mente do homem é diferente, é programada para nunca aceitar o fim e buscar, desesperadamente, uma forma de escapar de sina.
...daí nascem os instintos e os medos, mas também as engenhosidades. Então, mesmo que seu corpo desapareça, sua mente tem uma enorme dificuldade em aceitar tal fato. Vocês subestimam muito aquilo que move a mente humana.
- Então... Se estamos conversando eu aceitei que morri?
           
- Ou está pronto a aceitar.
           
- Bem, realmente, depois de tudo, me sinto em paz.
           
- E por falar em paz, chegamos: rua Joana Angêlica, 97. Creio que agora você consegue abrir a porta.
Minha mão foi à maçaneta e abri a porta...

Não importa o que me prendia, agora eu estava livre. Mas, cabeça baixa, ainda tinha perguntas que precisavam ser feitas.
           
- Ísis ainda mora aqui?
- Não, não. Ísis saiu do Rio logo depois que o senhor morreu. Não aguentou viver com todas as lembranças que tinha. Mudou-se pra São Paulo para trabalhar, casou, teve dois filhos, separou e agora está muito feliz...
- E meu pai?
           
- Pensa no senhor todos os dias, todas as horas, principalmente antes de dormir. Por um tempo, evitou fotos suas pela casa, pela dor destroçante que traziam, mas conseguiu seguir a vida e vive bem...
...ele também se mudou, voltou pra cidade onde nasceu e mora afastado de todos, num sítio. Eventualmente recebe visitas, mas a solidão tem sido fundamental para que ele consiga entender sua partida. E tem lido bastante.
- E o taxista?
           
- Ainda se culpa muito por tudo. Talvez precise dirigir por mais algum tempo até que possa, finalmente, estacionar e sair deste táxi, igual você vai fazer agora.
Não quis perguntar mais nada.

Me despedi comum aceno de cabeça, um sorriso, e sai do táxi completamente sem rumo.

É estranho morrer, ou ter a consciência dessa morte. É simplesmente se deparar com a inexistência de qualquer indicação sobre um caminho a tomar.
Não conseguia ter certeza da existência de céu ou inferno, mas seguramente sabia da existência de um purgatório.

E ali, diante do prédio onde Ísis tinha morado, onde fomos felizes e onde nos amamos por tantas vezes, simplesmente, já não havia nada para mim ali.
Qualquer realidade que conhecera era, agora, mera lembrança que não me cabia mais.

Sentia que era preciso andar, então lembrei da praia que ficava tão pertinho dali, o local onde sentamos tantas vezes pra ver o pôr do sol, e por que não?
Percebi que fazia tempo que não via o mar.

Estava morto, e mar me ajudaria a pensar.

Fim
[NOTA]

Em grande parte, ou quase na totalidade, isso foi um sonho que tive em 2015.

Do sonho, lembrei perfeitamente de todos os diálogos e sensações quando acordei. Na época, lembro de ter despertado chorando, e corri para escrever.

Em Belém, 17/06/2015.
Vem ler essa, @bicmuller
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