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Ínglito @wingcosta
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Morrer dá trabalho ou a história de como enterrei o morador de rua que era meu pai - uma thread.
No dia 5 de dezembro de 2018 morreu, com 59 anos, Carlos Mário Bertulani. Conhecido como pintinha no tráfico da maré de itaciba, onde comandou o tráfico por algum tempo e tinha fama de ~~furar os outros. Eu conheci, até meus sete anos, como pai.
Carlos tinha três filhos. Conhecia um dos outros, Carlos Eduardo, e conheci Carlos Junior no processo. Foi Carlos Eduardo quem me ligou pra dizer que ele tinha morrido e pedir que eu resolvesse a partir dali
Eu não diria não. Vi meu pai esse ano pela primeira vez em 20. Mas Carlos Eduardo, gay, casado, sofria constantemente com preconceito e insultos do nosso pai, mas sempre tentava ajudá-lo. Achei que poderia tirar esse peso dele dessa vez
Fui ao Pronto Atendimento. Lá a assistente social me disse que como eu não tinha contato com ele e ele era pessoa em situação de rua, eu poderia procurar um Centro de Referência a Assistência Social para solicitar auxílio funeral (morrer além de dar trabalho é caro)
Esse é o resumo da minha passagem por lá, porque eu fui direcionado de um guichê pra outro umas três vezes e esperei no último uns 40 minutos até o enfermeiro aparecer e dizer que eu tinha que conversar com a assistente social
Mas vamos seguir daqui. Ainda vamos acompanhar momentos de muita falta de preparo e educação por parte de profissionais de diversas áreas
A assistente social do Pronto Atendimento me orientou a buscar o CRAS com os documentos do de cujus (termo que aprendi nesses dias). Mas pera aí. Esse cara morava na rua, não tinha nada nos bolsos dele. Como vou fazer? Procura o CRAS que lá eles te dizem, mas tenta achar, sei lá
Tava acompanhado do meu amigo William e lembrei que meu pai às vezes ficava na casa da mãe dele (em quem ele batia - mesmo cega e sem pernas em decorrência da diabetes - pra ficar com o benefício do INSS). Vamos lá? Vamos lá.
A casa, ou o que restou dela, fica no fim de um beco com largura suficiente pra passar apenas uma pessoa (magra). Eu meso tive dificuldades. No começo do beco já me pararam. Uma senhora com uma criança no colo que se apresentou como Tuca. “Você é filho de Carlinho né?” Sou.
“Olha eu ficava com ele. Me falaram que precisava de documento dele. Fui lá na casa mas não achei nada”. Beleza dona Tuca, vou procurar. “Não vai lá não. Você não vai nem conseguir entrar. Não vai não”. Prestei atenção na dica olhando pro fim do beco, de onde um jovem me vigiava.
Beleza dona Tuca é a casa da minha avó e eu tenho alguma lembrança desse lugar, vivi ali também. To indo lá. Quanto mais próximo eu chegava, mais nervoso o rapaz no fim do beco ficava. Não parei na casa, fui direto nele. “E aí? Beleza? Conhecia Carlinho? Sou o filho dele.”
“Conheci não senhor. Vinha nessa casa aí às vezes senhor.” Como você se chama cara? “Obina, senhor”. Beleza Obina, vou ali na casa procurar os documentos dele tá? Obina nao falou nada. Entrei na casa e William ficou no beco. Só aí me toquei que estávamos parecendo dois policiais
O que restou da casa estava assim
Enquanto eu remexia as coisas e memórias, Obina entrou no terreno. “Vou pegar minha mochila aqui, pra almoçar”. Beleza pega aí Obina. Ele pegou. CLACK TRECK. O barulho da mochila, fechada com cadeado, me fez imaginar o que tinha lá dentro e em nenhum dos casos pensei em almoço
Revirei o lixo que tinha lá dentro, local impossível de um ser humano ficar mais que os 15 minutos que fiquei, e não achei nada. Me despedi de Obina enquanto observava um amigo dele chegar me olhando de maneira estranha. Fomos embora. Como enterrar alguém sem documentos?
Vamos ao CRAS, lá devem saber. Chegamos no local, uma casa improvisada. No primeiro andar uma moça fez uma cara estranha ao ouvir minha história, tentou ligar pra alguém e finalizou dizendo “procura o Batatinha”. Lembrem desse nome.
Liguei pro Batatinha. Ele é agente funerário e me explicou que eu deveria mandar o corpo do Pronto Atendimento para o DML. De lá, sem documentos, eu teria de procurar um plantão judicial pra um desembargador me permitir acesso ao auxílio funeral e enterrar o corpo
Batatinha me falou que faria essa remoção por um preço camarada e começou a entrar dinheiro na história. Não tenho pra gastar e sinceramente não queria. Mas beleza. Se essa remoção fizesse essas coisas começarem a andar, vambora.
Fui ao Pronto Atendimento e pedi que a assistente social solicitasse a hospedagem do corpo no DML. Ela me ligaria quando conseguisse
Conseguiu por volta das 16h. Autorizei a remoção pro DML, mas eu tinha que ir lá fazer o reconhecimento. Só aí eu já tinha rodado uns 100km entre Vitória e Cariacica em idas e voltas. Vamo lá, já tá acabando
Cheguei no DML e fui ao Serviço de Verificação de Óbito. Lá Batatinha falou com a enfermeira “PNI” ou Pessoa Não Identificada”. A enfermeira foi um doce e disse “SE AQUI TEM NOME COMO É NAO IDENTIFICADA?” Expliquei a história e ela repetiu a pergunta ainda mais grosseira
Nesse momento um dos meus irmãos me ligou. Juninho, o que eu não conhecia. Disse que achou documentos dele. Talvez me ajudasse. Fui buscar o documento, mas não chegaria a tempo de fazer a entrevista com a assistente social do SVO.
No caminho (mais uma ida pra Cariacica, mais 20km) liguei pra secretaria de assistência social do município, que não sabia o que fazer e me orientou buscar o CREAS, o Centro de Referência Especializado em Assistência Social. A partir das 17h ele funcionava em plantão até as 22h
Lá a técnica em Assistência Social chamada Vanessa me salvou. Explicou que no CRAS me mandaram direto pro Batatinha porque pela forma como eu estava vestido acharam que eu deveria pagar por tudo. Ela disse pra eu conseguir a documentação e procurá-la no outro dia no mesmo horário
Achei que ia enterrar no mesmo dia (quarta). Já ficou pra sexta
Depois de uma noite atribulada, cheguei no DML 6h30. Fui atendido às 9h40 pela enfermeira grosseira do dia anterior. Senta aí, vou te fazer umas perguntas
Ele vivia onde? Não sei. Era casado solteiro viúvo? Não sei. E sua mãe? Morreu há 10 anos. Vai ficar difícil nossa conversa hein, disse a enfermeira mal educada. Ela lida com pessoas enlutadas diariamente, como pode ser tão insensivel?
Eu não sabia responder às perguntas da mulher, ela me tratava com um desprezo real e parecia sem paciência. Falei firme “minha senhora, tem um protocolo de pessoa em situacao de rua? Se tiver eu recomendo que você siga”. Ela disse que não tinha e me passou pra assistente social
A assistente social mandou o corpo do SVO para o Instituto Médico Legal, o IML. De lá eu teria que fazer toda a documentação e depois ir à delegacia. Já era 10h, a policial mandou voltar às 12h, quando todos os corpos já teriam passado por necropsia
Voltei no horário combinado. A mesma policial falou “volta às 14h que nem começaram ainda”. Fui ver a apresentação da monografia de William, que arrebentou e tirou 9. Voltei as 17h, porque ate lá já teriam resolvido tudo. A policial civil sentiu pena de mim e me atendeu logo.
Não foi força de expressão. Ela falou isso pra um casal do lado. “Vocês esperam só um pouquinho que eu to com dó desse menino. Ele tá aqui desde as 6h”.
Peguei a papelada e fui a Divisão de Homicídios e Proteção a Pessoa. Fui muito bem atendido (e muito rápido) pelo escrivão, que me liberou logo e fui direto pro CREAS (mais 30km). A assistente social estava em atendimento na rua. “Chego em 40 minutos ou uma hora”
Esperei. Ai eu já tava craque em esperar.
Chegou Vanessa já ligando pro Batatinha, dizendo que já estava tudo liberado pro “rapaz do auxílio funeral”. Assinei mais uns papéis e agora acabou. Mas não acabou. Eu teria que estar no IML cedinho pra liberar o corpo pra funerária.
Cheguei 8h no IML. Estavam em necropsia e eu teria de esperar mais um pouco. Enquanto esperava eu ouvia barulhos de serras e furadeiras lembrando da hora em que eu estive lá dentro pra reconhecer o corpo. Fede a açougue podre. Enfim, eu tava esperando.
9 e pouco. Corpo liberado e já na funerária. Acabou! Não. Tem que ir no cartório registrar o óbito. Mais 30km pra conta. Certidão de óbito na mão, quatro cópias simples, fim. Nao fui ao cemitério. Carlos Mário Bertulani foi enterrado no dia 7 de dezembro de 2018.
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