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Bom, aqui vamos nós no fio da dita "weird food". Pra começar, vou relembrar o que disse na época da Ração do Dória™: comer é um ato político, social, cultural e econômico. E sim, é racista e xenofóbico ver a escolha alimentar de um povo como esquisita ou exótica.
A maioria da dita "comida esquisita" nasceu em períodos de escassez extrema de alimentos, geralmente via processos tácitos de processamento de alimentos pra: a) transformar algo não-comestível em comestível ou b) aumentar a vida útil do alimento depois da colheita/abate/coleta.
(Dá até pra acrescentar um c) melhoria das características organolépticas de um alimentos — o processo biológico da nossa escolha alimentar favorece certos sabores/aromas por uma questão calórica, e no fim comer tem sim a ver com prazer e emocional, mas seria um bônus. ENFIM.)
Então pegando um exemplo: um queijo (leite fermentado e eventualmente seco) dura muito mais do que leite fresco. Nasceu como forma de preservar o leite por mais tempo. Alguns têm ainda aromas e sabores que provém da fermentação (que pode ser de mil tipos), mas como disse: bônus.
Com o tempo, produzir e comer queijo se tornou um aspecto cultural. O paladar de ALGUNS povos e etnias se desenvolveu pra gostar de alguns queijos. O trato digestivo destes se desenvolveu pra processar queijo. Um ciclo sem fim. Mas EM OUTROS POVOS ISSO NÃO ACONTECEU — óbvio.
Então nós, brasileiros, acharmos por exemplo gorgonzola gostoso e não uma comida estranhíssima que consiste em leite de vaca estragado & contaminado por um fungo verde com sabor e aroma bem pungente é puramente CULTURAL. (Não comente AH MAIS EU NÃO GOSTO pois não é sobre você.)
E mais: o que faz com que Hákarl — tubarão/cação fermentado — seja uma iguaria e não "comida de pobre" é simplesmente a posição de privilégio dos povos escandinavos na narrativa dominante da história. Porque assim, se tem algo que nasceu como "comida de pobre", é Hákarl.
Só pra situar, Hákarl existe porque a carne crua de alguns tubarões tem CIANETO — sim, o veneno. Mas alguém descobriu que enterrando o tubarão por meses, era seguro comer o bicho. Imagina o DESESPERO de fome pra comer tubarão enterrado por meses, só porque puro faz mal.
Durante essa fermentação anaeróbia forçada pelo enterramento, o cianeto é quebrado em compostos amoníacos. O que significa que o Hákarl fica com um cheiro e um sabor fortíssimos, mas pelo menos ninguém morria envenenado comendo. Esse é o nível do desespero da fome dos vikings.
Agora me diz aí qual a diferença disso — ou de uma comida japa maneira & chique com wasabi, um agente antimicrobiano — pra uma buchada de bode? Um chouriço (uma fucking linguiça de sangue)? Um torresmo (que é pele do porco, rapazeada)? Insetos? SOPA DE MORCEGO?
Então assim, vamos sossegar a periquita no "bem feito, quem mandou comer X" porque é o cúmulo da hipocrisia, da falta de respeito, da ignorância de não tentar se esforçar nem um pouco pra tentar ver além das narrativas dominantes (alimentares ou não, né).
BÔNUS: economia e alimentação também não se relacionam só a nível micro/individual — pessoa X tem dinheiro pra comida Y, preço da comida Z subiu —, mas principalmente a nível macro. Exemplo: 75% (!) da agrobiodiversidade se perdeu desde os anos 1900 por razões econômicas.
Por conta da estruturação da economia, que segue regras como a lei da procura e oferta, a humanidade (como uma entidade generalizada) começou a focar em determinados tipos de alimento por razões econômicas, desconsiderando outros parâmetros. O resultado disso é impressionante:
Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), em 1999 75% do alimento na Terra era produzido a partir de 12 — DOZE, D O Z E — tipos de plantas e animais. DOZE coisas geram TRÊS QUARTOS da comida DO PLANETA INTEIRINHO.

fao.org/3/y5609e/y5609…
Mais dados desse link da FAO: a gente conhece entre 250 e 300 mil espécies comestíveis, mas só usa 4% disso, cerca de 150 a 200 espécies. Obviamente disponibilidade, clima, solo e outros fatores interferem nisso, mas é uma questão majoritariamente ECONÔMICA.
Podia me alongar contando como foi a economia estadunidense (principalmente a chamada Corn Law) que nos trouxe a este ponto burro da agronomia em que a gente alimenta o gado com milho e não com grama, mas fica pra outro fio. (Ou: leiam o Dilema do Onívoro do Michael Pollan.)
É isso, fim do fio que vai do nada ao lugar nenhum mas eu precisava falar disso rs
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