My Authors
Read all threads
A thread das canetas Conjunto de canetas parker jotter. Fotografia: jetpens.com
Em um mundo que a quase totalidade da escrita é feita com um teclado, é quase um anacronismo falar sobre canetas mas a falta de sentido nunca impediu esta arroba de escrever sobre alguma coisa.

A caneta é uma tecnologia obsoleta, dada a mudança drástica de como escrevemos hoje.
Porém, assim como os relógios – que se tornaram obsoletos e desnecessários quando da adoção em massa dos celulares (ouvi mais d 1 vez alunos dizendo "pra q relógio se eu posso ver a hora no celular?") – as canetas ainda possuem os seus entusiastas e seguem sendo úteis atualmente.
Nossa história começa com esse cosplay de Machado de Assis aí abaixo, Lewis Waterman. Em 1884 ele patenteou uma caneta de pena com reservatório de tinta que não vazava. Estava criada a primeira caneta tinteiro moderna, a Waterman Ideal Fountain Pen. Retrato de Lewis Waterman.Caneta tinteiro waterman ideal
No tempo de seu lançamento as canetas tinham de ter suas penas mergulhadas na tinta a cada palavra. A Waterman, por outro lado, podia escrever dezenas de páginas até precisar ser recarregada. O seu segredo era que o corpo da caneta era um grande reservatório de tinta.
O sucesso foi tremendo e a Waterman virou uma gigante do setor de escrita, operando até hoje. A Waterman tem em sua linha modelos icônicos como a Waterman Carené, com design inspirado nas lanchas de madeira. Na minha opinião uma das canetas mais bonitas já fabricadas. Lancha de madeirawaterman carene
Com a explosão de sucesso das canetas Waterman não demorou muito para que muitas empresas passassem a fabricar canetas tinteiro, cada uma trazendo suas inovações como, por exemplo, bombas de enchimento do reservatório de tinta.
Ou embolos:
Ou mesmo sistemas a vácuo:
A briga pela inovação no mercado de canetas era intensa e gerou alguns produtos curiosos como a Sheaffer Snorkel, que tinha um tubinho expansível em seu bico para recolher até a última gota de tinha da garrafa.
Outros fabricantes encontraram soluções diferentes para esse problema. A montblanc, por exemplo, aposta em um tinteiro com reservatório duplo: quando o nível da tinta está baixo você inclina o tinteiro e enche o reservatório secundário, permitindo a pena ser abastecida.
A Waterman não ficou para trás e criou seu tinteiro facetado, que permitia ser inclinado para que as canetas conseguissem acessar os restinhos de tinta.
Curiosidade: Japão, Brasil e Alemanha são os únicos países do mundo que fabricam garrafas enormes de tinta para tinteiro: respectivamente 350ml, 500ml e 1 LITRO. Do ponto de vista ecológico são ótimas: você passa o resto da vida com uma garrafa de tinta.
Mas a competição não se limitava à forma de enchimento de tinta. Havia inovação também nas penas, desde penas super duras para usar com papel carbono (como as sheaffer PFM). Até as penas super flexíveis, que permitiam floreios na escrita: sheaffer Pen For Men (PFM)
O mercado estava aquecido e lotado de produtos com vantagens sutis. Um verdadeiro mar vermelho para quem queria concorrer. Era tempo de uma mudança radical.

Entra em cena László Bíró, um Húngaro que emigrou para a Argentina fugindo do nazismo. László Bíró
Mais tarde eu volto pra terminar o fio.
O lazlo viu que a tinta de impressão de jornal secava quase instantâneamente e teve a ideia de colocar em uma caneta tinteiro para que os canhotos pudessem escrever sem borrar tudo.

Só que a tinta de tinteiro tem consistência de água e a de jornal lembra graxa. Estragou a caneta
Nem um pouco desestimulado pela falha colossal, ele desenvolveu um novo tipo de caneta para usar essa tinta de impressão, a birome. Estava inventada a primeira esferográfica a conquistar o mercado.
As esferográficas tinham duas grandes vantagens sobre as tinteiro: escreviam em qualquer direção (tinteiros precisam ser seguradas de uma forma específica) e tinham cargas que duravam até 600 páginas (como a Goliath da foto), 10-10x mais que as tinteiro.
O sucesso mundial foi tão grande que o dia do inventor é comemorado na Argentina no aniversário de lazlo.
Seduzido pela simplicidade das esferográficas, Marcel Bich licenciou a tecnologia de lazlo, e criou a empresa BIC, com o propósito de fabricar canetas descartáveis.

O mundo foi tomado de assalto pela novidade.
Ainda tem muita história. Mais tarde eu volto!
Retornando:

O sucesso avassalador das BIC significou o fim de centenas de fabricantes de canetas e o início do fim da era da hegemonia das canetas tinteiro.
Logo todos os fabricantes de caneta passaram a fabricar as esferográficas, o público estava fascinado por aquelas canetas. As tinteiro ficaram relegadas a um nicho reduzido de mercado.
No final dos anos 1950 o mercado estava saturado de esferográficas, era muito difícil se destacar.

Hora de revolucionar mais uma vez. Só que ao invés da mudança vir de um novo competidor ela partiu do lugar mais improvável: da Parker.
A empresa estava ficando pra trás por mais de uma década desde a explosão esferográfica. Ela insistia em produzir apenas canetas tinteiro.

Mas em 1960 isso mudou e a Parker lançou aquela que seria a caneta esferográfica não descartável mais popular do mundo até hoje, a jotter.
A revolução que esta caneta causou veio de duas observações prosaicas: 1) ao contrário das canetas tinteiro, as canetas esferográficas podiam ficar destampadas sem que ocorresse nenhum problema de fluxo de tinta; e 2) as pessoas perdem a tampa das canetas.
Então porquê não criar uma caneta sem tampa, com ponta retrátil? Foi a partir dessas observações que se criou a Parker jotter e a marca voltou a ser uma potência do setor de canetas.
Com a jotter o destino das canetas tinteiro parecia estar selado. Os pregos do caixão batidos e com pontas viradas. A praticidade da jotter era inigualável.

Ou não?

Que entrem os japoneses da pilot.
Até os anos 1960 as canetas esferográficas não tiveram grande sucesso no Japão. O motivo era muito simples: o alfabeto japonês exige linhas finíssimas se você quiser imprimir caracteres do tamanho das letras ocidentais e essas linhas finíssimas não eram possíveis com as BIC.
Mas a jotter acrescentava uma praticidade de não perder a tampa que podia ser o diferencial para que o público japonês aceitasse as esferográficas (ainda que elas causem a escrita em caracteres maiores).
A pilot, vendo seu mercado ameaçado fez então o que parecia impossível: uma caneta tinteiro com pena retrátil, sem tampa. Trazia as vantagens da jotter com a preferência japonesa pelas canetas tinteiro. O sucesso no Japão foi tremendo, sendo a caneta fabricada desde 1960 até hoje
O fio fica por aqui por hoje. Amanhã termino essa história.
Retomando e seguindo para o sprint final desse fio.

Percebi que esqueci de dizer o nome da caneta tinteiro de pena retrátil da Pilot. O nome dela e Vanishing Point.
Com o mercado das canetas descartáveis tomado pelas BIC,o das canetas esferográficas ultra-práticas pela Parker Jotter e com a revolução no mundo das canetas tinteiro que foi a Pilot Vanishing Point, os outros fabricantes tiveram que "se virar nos 30" para permanecerem relevantes
Alguns, como a Montblanc apostaram na cópia de designs antigos de outros fabricantes para capturar a estética clássica das canetas em formato de charuto. Excelentes canetas para quem gosta de objetos maçantes. Estou falando mal mas tenho um monte dessas... Sailor 1911 largePilot 823Montblanc 149
Outros, como a Pelikan, decidiram buscar em suas linhas originais inspiração para criar produtos que aliassem design próprio e funcionalidade. Nas pelikan, por exemplo, o listrado do barril é semitransparente para permitir a visualização do nível de tinta.
Mas quem, na minha opnião, deu o duplo twist carpado do design de canetas foi a Lamy. Em 1966 ela contratou Gerd Alfred Müller, que já tinha trabalhado na Braun, para desenhar sua nova caneta topo de linha.
Gerd, como todo designer que já trabalhou na Braun, era um forte discípulo dos ensinamentos da Bauhaus, a escola de design alemã do começo do século 20 que pregava a "forma segue a função" e cujos alunos projetaram objetos que são reconhecidos até hoje pela beleza e sofisticação.
Pois bem, usando a sua experiência em design, Gerd criou a caneta que é a verdadeira definição de sofisticação discreta, a Lamy 2000.

Uma curiosidade: nos anos 1970 a montblanc vendia suas canetas na Arábia Saudita com um triangulo na tampa ao invés da clássica neve do Monte Branco.
O motivo é, no mínimo, curioso: os sauditas, extremamente antisemitas que eram, achavam o floco de neve parecido demais com a estrela de Davi e se recusavam a comprar as canetas até que a Montblanc passou a adotar o triangulo naquele país. (fonte: fountainpennetwork.com/forum/topic/29… )
Chegando ao fim do fio, falta falar desse senhorzinho aí, Paul C. Fisher. Ele, como todos os outros já mencionados nessa thread, queria entrar no já megacongestionado mercado de canetas e percebeu que tudo quanto era tipo de inovação possível ou imaginável já ocorrera no setor.
Vendo que o possível já tinha sido feito, só restou a ele fazer o impossível.

As canetas, todas elas, tem um problema em comum: só escrevem com a ponta para baixo (como qualquer pessoa que já tentou escrever em um caderno apoiado numa superfície vertical já percebeu).
Então ele se dedicou a desenvolver uma caneta que escrevesse em qualquer posição, até mesmo de cabeça para baixo.

Alguns milhões de dólares depois, ficou pronta a sua carga, que usava uma esfera empurrada por gás comprimido para forçar a tinta a ficar em contato com a ponta.
Nascia a Fisher Space Pen, a caneta que foi levada pelos astronautas durante as missões da lua. Eles não podiam usar canetas normais pois a falta de gravidade fazia elas falharem. A Space Pen resolvia muito bem esse problema. Os soviéticos levaram um lápis.
Bom pessoal, era essa a história que eu queria contar. Se gostaram desse fio, tem outros aqui:
Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh.

Enjoying this thread?

Keep Current with ouriço

Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

Twitter may remove this content at anytime, convert it as a PDF, save and print for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video

1) Follow Thread Reader App on Twitter so you can easily mention us!

2) Go to a Twitter thread (series of Tweets by the same owner) and mention us with a keyword "unroll" @threadreaderapp unroll

You can practice here first or read more on our help page!

Follow Us on Twitter!

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just three indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3.00/month or $30.00/year) and get exclusive features!

Become Premium

Too expensive? Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal Become our Patreon

Thank you for your support!