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Orientalismo e hegemonia: um fio de sábado

Falei já outras vezes da importância da obra de Edward Said, O Orientalismo. E esse é mais um fio sobre o tema, tentando explorar a leitura que Said fez sobre o conceito de hegemonia de Gramsci.
Para começar, a ideia desse fio veio revendo o filme de Jackie Chan, "O mestre invencível" ("Drunken Master 2", ou "Jui Kuen 2"). É um filme de kung fu de 1994 em que Chan interpreta Wong Fei-Hung, herói folclórico cantonês do final do século XIX, início do século XX.
Nesse filme, Fei-Hung acaba tentando contrabandear o ginseng de seu pai e descobre acidentalmente uma rede de contrabandistas que tirava relíquias chinesas e entregava elas nas mãos do embaixador britânico - que por sua vez, enviava elas diretamente para o Museu Britânico.
Aliás, recomendo muito! O filme é mais comédia do que propriamente ação, mas as lutas são legais e o "kati do bêbado" é divertido.

Tá, mas onde que entra Said? E onde entra o sardo?
Bem, Said se considera devedor da leitura de Gramsci que distingue a sociedade civil e a sociedade política - e que instituições da primeira são os espaços onde a cultura opera, com a influência das ideias agindo sobre os sujeitos.

Como, por exemplo, o Museu Britânico.
Isso não é pouca coisa: nesses espaços de "cultura", ensina-se a essência do orientalismo, ou seja, a forma pela qual ele se constitui como hegemônico, com uma noção coletiva de "europeus" versus os "não-europeus". Isso porque, o europeu, com livre acesso ao museu, pode...
...ver, com seus próprios olhos, por exemplo, o "selo imperial do mandato celestial" (ok, o artigo é ficcional, do filme que mencionei antes, mas museus como o Guimet, em Paris, possuem acervos só com relíquias vindas do "oriente").
A forma como se consolida essa hegemonia que, em última instância, faz um apelo a uma identidade europeia, é o norte pelo qual operaram - e ainda operam - uma série de agentes estatais e não-estatais em grandes países europeus. E suas consequências podem ser vistas até hoje, ...
...como bem lembra a @_pinheira .(theguardian.com/world/2020/mar…)

Said vê, nos séculos XIX e XX, diferentes agentes nessa hegemonia: diplomatas, eruditos, marinheiros, professores, militares, jornalistas, linguistas, teólogos, historiadores, artistas. Todos eles consolidaram a ideia...
...do exotismo do outro "oriental". E quanto mais exótico esse outro, mais se reafirmava a singularidade - e superioridade - do europeu/ocidental, capaz de desvendar os segredos do "oriente" sem se deixar ser "orientalizado".
Esse domínio tão escancarado permitiu que o "Oriente" fosse convertido em objeto de estudos, exibido em museus, "dissertado e teseado", usado como exemplo sobre mentalidades, práticas, filosofias. O orientalismo, entendido como o campo de estudos sobre o Oriente, é um campo de...
...produção de consensos. E esses consensos partem de algum lugar. No caso exemplar do filme de Jackie Chan, do museu britânico.

Mas retomando o filme, há um ponto no qual Said talvez não tenha dado a devida atenção - ou que pelo menos não se concentrou tanto.
Ou seja, como o roubo, o saque e o sequestro da história no final das contas ajudam a construir a hegemonia sobre a superioridade do "europeu/ocidental" acerca dos não-europeus.

E aqui um outro exemplo:
Em 2014, vi pela primeira vez na vida o Código de Hamurábi. Anos trabalhando com o Ensino Fundamental e Médio e dando aula disso, acabei encontrando as estelas originais sendo expostas no Louvre. Foi lindo, mas me deu um mal-estar, pois fiz a seguinte pergunta:
"O que a principal relíquia dos babilônicos, um povo que se concentrava onde hoje seria o atual Iraque, está fazendo num museu francês?"

Ora, ela está lá porque corrobora a narrativa de todos os livros didáticos: de que aquela civilização deu origem a nós hoje em dia.
Podem ver, todo livro didático começa com capítulos de História Antiga falando dos Sumérios e outros povos mesopotâmicos. E depois disso, talvez haja alguma menção sobre a região ao se falar do califado abássida (quase 2.000 anos depois).
E depois? Depois o Iraque aparece somente como nota nos capítulos finais, falando sobre Guerra do Golfo, Saddam Hussein, etc.

Ou seja, o auge da narrativa civilizacional europeia/ocidental precisa do Código de Hamurábi - e por isso ele está em Paris.
Mas depois, o Islã e, principalmente, os conflitos do século XX, são colocados completamente a parte da narrativa gloriosa. São apêndices da glória da história de transformações e revoluções que a modernidade ocidental conta para si mesma.
Livros didáticos, museus, filmes...todos eles estabelecem narrativas históricas. Mas Said alerta: no bojo dessas narrativas, se concentra uma hegemonia silenciosa que reforça, mais do que nunca, a superioridade do europeu.
É difícil tirar tanto, claro, de um filme de Jackie Chan (mas é um bom filme, recomendo!). Mas ele chama atenção para algo que está na origem do livro didático, do museu, dos próprios filmes...o roubo, o saque, a violência.
No final, lembrando um célebre marxista, os monumentos (e os museus entram nessa categoria) carregam consigo sempre uma boa dose de barbárie. A história dessa barbárie, contudo, não costuma adentrar os museus ou os livros didáticos.
Isso porque a construção de uma hegemonia pressupõe que uma dose de dissimulação seja empregada. Afinal, como outro marxista pergunta, se toda a dominação fosse às claras, qual o sentido de qualquer ideologia mascarar a violência?
Talvez nisso é que resida a força de um filme de kung fu. Usar de uma linguagem de violência, dança e humor para denunciar a barbárie. Não uma barbárie que ficou no passado, mas sim a sua perpetuação ainda hoje.

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