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Por sugestão da @nomelouco37 e do @filhomacial , resolvi fazer esse fio comentando Said e sua obra "Orientalismo".

Eu já falei disso em alguns podcasts que fui convidado, como o @dragoesgaragem e o @profscontraoesp , mas com caráter mais geral. E gostei dos dois programas!
Em aula, por sua vez, a discussão sobre "Orientalismo" geralmente fica para o início da disciplina. Isso pq parto de um princípio de que a crítica de Said depende, acima de tudo, de um "olhar" não sobre o "Oriente", mas sim sobre quem produz discursos definindo o que é "Oriente".
Quando Said escreve "Orientalismo", em 1978, ele se encontra na seguinte posição. Intelectual nascido na Palestina, viveu toda sua vida no exílio. E ao estudar sobre a história do seu povo, se deparou com a dura realidade: para conhecer a história e a cultura dos palestinos...
... teria que estudar na Inglaterra, pois alguns dos maiores intelectuais especialistas nos temas caros a Said eram de universidades como Cambridge e Oxford.

A indagação que Said propôs, contudo, mudou o foco de sua análise: afinal, o que dá legitimidade a tantos intelectuais...
... britânicos para falarem sobre os palestinos e os árabes com tanta autoridade?

A partir daí, Said pressupõe um marco histórico inusitado para os "estudos orientais" na Europa: o sequestro da pedra de Rosetta pelas tropas napoleônicas no Egito, em 1798.
Vejam, Inglaterra e França já disputavam o acesso ao valioso comércio com a Índia no século XVIII. A busca pelo algodão substituía o interesse europeu por especiarias. E nesse contexto, o conhecimento sobre países asiáticos passou a ser vital.
Mas quando os franceses, sob os efeitos do iluminismo, adquirem a pedra capaz de traduzir hieróglifos egípcios para o grego antigo, a busca pelo conhecimento do outro ganha explicitamente o tom de "missão civilizatória".
Nesse ponto, eu sempre cito os engenheiros ingleses, em missões coloniais na Índia nós séculos XVIII e XIX. Ao se depararem com cisternas do século V dC, vitais para coleta e filtragem de água em região de monções, eles orientavam a destruição das reservas de água indianas.
Nem preciso dizer o quanto isso foi catastrófico, né? Talvez baste dizer que a estimativa atual de mortos pela fome na Índia colonial é de 55 milhões de pessoas.

Segundo os ingleses, esse modo de viver indiano era anti-higiênico e propenso a doenças...
...o que revela, em tons foucaultianos, a capacidade do poder imperial europeu decretar como o outro oriental/indiano deveria viver.

Mas como Said mostra, essa não foi a única face da missão civilizatória europeia.
Ao se depararem com estruturas filológicas e linguísticas dos idiomas antigos (como o egípcio antigo, o sânscrito, o árabe, o persa, o chinês etc) e o estudo sistemático de seus textos sagrados, esses intelectuais europeus formularam verdadeiros tratados sobre...
...o "pensamento oriental" se baseando em fragmentos culturais bastante estruturados como língua e religião. Isso gerou uma compreensão tipicamente ocidental capaz de formular uma dicotomia:

Ocidente: modernidade e transformação.
Oriente: tradição e estagnação.
Isso acabou legitimando a figura do Ocidental como "agente da mudança" (como no caso da abolição britânica do ritual do "Sati", na Índia, em 1823).

E mais, conferiu também ao intelectual ocidental a possibilidade de estudar a fundo um "Oriente" estável e estático para...
...com isso poder ser um sujeito capaz de entender, transformar e até mesmo ensinar a cultura do outro "oriental" pra ele mesmo.

(P. Ex. No filme de Tom Cruise, "O último samurai", quando o americano termina o filme ensinando o imperador japonês o que é ser japonês de verdade)
Said se preocupava que tantos intelectuais britânicos brilhantes, da direita e da esquerda, eram incapazes de perceber que seus campos de estudo ("o Oriente") não eram nada neutros e que eram, invariavelmente, a herança intermitente do colonialismo.
Anos depois, Gayatri Spivak retomou essa crítica de Said e jogou ela no colo dos intelectuais pós-estruturalistas franceses: afinal, a morte do sujeito não poderia chegar num "Oriente" que até pouco tempo atrás não era nada mais que um objeto.

Mas isso é outra história...
Num fio posterior quero passar indicações mais aprofundadas de leitura, mas dá para ficar por aqui.

Said, pra quem não sabe, é muito mais que um acadêmico, era também um intelectual engajado pela causa da libertação palestina.
Ler sua obra, como marxista, foi um salto qualitativo para mim, pois nos obriga a pensar concretamente na questão do espaço social da produção do conhecimento.

Isso não significa deslegitimar todo conhecimento produzido, mas sim levar sempre com a gente um "olhar".
O "olhar" de que quando falo algo sobre outro, enuncio também a mim mesmo.

Ou se Pedro fala sobre Paulo, posso saber mais sobre Pedro do que sobre Paulo.
PS: Eu sei que muitas coisas aqui eu já disse em outros fios e contextos, e que nem arranhei a superfície da obra de Said. Mas espero nos próximos fios agitar mais as coisas.
PS 2: Eventuais erros são basicamente porque digitei com uma mão só nas últimas horas, por motivos de:
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