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Vou fazer algumas considerações importantes sobre o covid e os modelos usados para fazer predições sobre o número de casos e uso dos recursos hospitalares. Mas, antes de tudo:
1. Lave as mãos e desinfecte superfícies. Sempre! Tome cuidado!
2. Proteja pessoas em grupos de risco.
Observações: esse fio não falará que o covid é só uma gripe, ele não é. Ele também não falará que galera pode sair fazendo festas e curtindo a vida como se estivesse tudo de boa, não é o caso.

Esse fio é só para dar uma perspective na hora de analisar modelos.
Com isso em mente, vamos às considerações sobre vírus, biologia e padrões que alguns modelos ignoram e geram "worst case scenarios" que são pouco realísticos, servem para espalhar medo, mas são publicizados porque geram cliques.
A primeira coisa é: padrões de transmissão vão mudar mesmo sem intervenções massivas em um determinado ponto original. O que quer dizer isso? Que o número de contágios novos a partir de uma pessoa contaminada não é constante. Se o modelo assume essa constância, ele está errado.
Por que isso acontece?
1. Pessoas passam a se isolar
2. Pessoas passam a se cuidar melhor
3. Há pessoas que podem ser mais "naturalmente imunes" a alguma coisa
4. O número de contatos entre pessoas não é necessariamente constante
5. Grupos mais suscetíveis são filtrados
Entrando em detalhes em cada um dos fatores:
1. Quando começam a sair notícias de um novo vírus ou bactéria, pessoas começam a diminuir atividades sociais mesmo sem ação coordenada do governo. Não todas, mas um parcela delas.
Isso acontece até mesmo sem notícias, mas em temporadas de doenças como no caso da gripe. Preste atenção nesses padrões em que velhinhos, por exemplo, começam a evitar sair quando está mais frio ou na temporada da gripe. Da mesma forma que escolas e pais assumem mais cuidado.
Essas ações não são perfeitas nem totalmente coordenadas, verdade. Mas elas diminuem o padrão de transmissão de doenças, mesmo que pouco. E seu efeito é maior com o tempo e com o nível de preocupação que a sociedade passa a ter (vide a temporada de gripe comparando Maio e Julho).
2. Quando a gente vê uma notícia sobre uma doença nova, naturalmente passa a tomar um cuidado extra. Mesmo que não seja uma doença nova per se, mas só de escutar que "a temporada de gripe promete ser pior" já ativa um sininho na cabeça que faz todo ficar mais preocupado.
Pessoas começam a fazer refeições mais "reforçadas", começam a lavar mais as mãos, começam a usar álcool em gel, tomam mais cuidado quando alguém espirra/tosse, etc. Tudo isso é natural, mesmo que não seja coordenado ou perfeito, e ajuda a diminuir o número de contágios.
3. Dentro do grupo de pessoas que podem entrar em contato com o vírus há pessoas que são naturalmente menos suscetíveis a infeção. Esse número também pode ser pequeno, mas ele afeta os padrões de transmissão (por isso, também, modelos usam intervalos de confiança).
Essas pessoas não vão virar carregadoras do vírus em momento algum e podem ser simuladas usando um modelo SIR em que o número de imunes originalmente não é zero.
en.wikipedia.org/wiki/Compartme…
Outros modelos mais complexos talvez trabalhem com essa definição desde o começo, mas como SIR ou SEIR models têm sido os mais comuns usados nas previsões que ficaram pop, é importante falar dessa característica deles.
4. Pessoas têm diferentes grupos sociais e níveis de interação com terceiros. Às vezes uma pessoa só consegue criar muito mais casos do que um grupo de 5 ou 6 indivíduos (Coreia do Sul aparentemente tem um bom exemplo disso).
Pessoas com muitas conexões sociais são um risco maior do que introvertidos, mas alguns modelos podem subdimensionar essa diferença porque é muito difícil de modelar. E qual o problema? Trata-se todo infectado como tendo a mesma probabilidade de infectar outros. Não é o caso.
50 infecções de introvertidos que trabalham de casa teriam um impacto bem menor na evolução de uma epidemia do que 5 infecções em pessoas que trabalham com vendas, fazem parte de grupos sociais e gostam de ir à festas. Por mais que dados no dia 0 assustassem mais na 1a situação.
Avalie se o modelo leva isso em consideração -- a parte de metodologia dele pode explicar isso. Isso também é importante quando a gente analisa os dados que estão sendo divulgados e pode explicar porque um país está mais sobrecarregado que o outro.
5. Esse é o fator mais triste dentre os cinco: pessoas mais suscetíveis, em geral idosos e imunocomprometidos, são filtrados rápido do sistema porque têm maior risco de morrer logo de cara. Como não há imunidade populacional, eles estão mais expostos e sofrem as consequências.
Uma situação que pode acontecer com o aumento do número de mortes dos grupos de risco é que a gente passa a isolá-los ainda mais. Isso também serve como um processo de filtragem dessas vítimas mais graves em potencial.
Mas como isso afeta o prognóstico do modelo? Tendo em vista que as pessoas mais frágeis foram sendo filtradas (ou morrendo, ou já foram contaminadas e estão imunes, ou foram isoladas), as próximas iterações deveriam ter uma "gravidade menor".
Pegando o caso da Itália: atualmente o número de mortes está subindo bastante, mas como o corona demora cerca de 3 semanas para levar ao óbito, essas infeções ainda são de fevereiro.
Provavelmente, mesmo sem medidas restritivas, dentro de um mês o percentual de mortes diminuiria em relação ao número total de casos -- porque aqueles mais prováveis a serem vítimas já foram afetados ou isolados.
Isso não quer dizer que não é pra fazer nada? De jeito algum. É só pra ressaltar que epidemias apresentam uma evolução natural que muitas vezes é desconsiderada numa modelagem matemática simples.
Isolamento de grupos de risco é algo eficiente e relativamente mais fácil de fazer.
Combinando esses 5 fatores, a gente vê que a propagação do vírus, por características populacionais, não vai ser constante e tende a diminuir em velocidade. Se o modelo não considera isso, ele está errado (por mais bem intencionado que seja quem modelou).
Todos os modelos que só assumem expansão exponencial apresentam essa falha. A pessoa por trás deles às vezes está com medo e não entende o que está modelando e acaba indo pra algo lugar comum pra ela. Não o fez por mal, mas acabou divulgando algo errado.
Agora a gente precisa entrar na característica do vírus em si, não só em dinâmicas populacionais, apesar de haver um crosstalk interessante entre eles.
Vírus sempre sofrem mutações. A questão é quão rápido elas ocorrem e o que isso resulta em diferenças na sua capacidade de causar danos. Aqui entra um pouquinho de evolução dentro de biologia (no caso, sobrevivência do mais adaptado).
Se as mutações tornam o vírus mais letal, o que a gente vai ver é um aumento no número de fatalidades em um curto espaço de tempo (isso poderia explicar parte da diferença entre Itália, Irã e Coreia do Sul, por exemplo). Todavia vírus mais letais têm dificuldade de propagação.
Por quê? Porque conforme as pessoas mudem seus padrões sociais, há uma chance bem grande do vírus começar a matar a pessoa infectada antes que ele se transmita para outras pessoas. Repita isso alguns ciclos e a tendência é que vírus menos letais sobrevivam por vantagem evolutiva.
Isso explica em parte como a gripe Espanhola foi tão avassaladora, mas depois desapareceu totalmente por quase um século. Quando o H1N1 voltou, ele veio numa versão mais forte que a gripe normal, mas mais fraca que a de 1918.
Segundo a pesquisadora que sequenciou o 1o caso de corona brasileiro, o vírus tinha uma taxa de mutação relativamente baixa, então a gente consegue analisar os padrões de forma mais fácil:
exame.abril.com.br/ciencia/cienti…
Isso é importante para o modelo porque ele precisa incorporar essa redução da taxa de letalidade do vírus com o tempo, não só a questão do aumento da imunidade da população. Se o modelo assume crescimento continuado, ele está errado. Se assume duas ondas de mesmo impacto, também.
Assim, os modelos podem assumir um crescimento alto de casos no começo, mas essa velocidade tem de diminuir significativamente com o passar do tempo. Há tanto adaptação da população, seja por imunidade, seja por comportamento, como dos vírus com a seleção de menos letais.
Isso torna a situação menos calamitosa? Não. Mas são detalhes que basicamente nulificam parte dos piores cenários descritos por algumas pessoas. Também permitem que a gente desenhe parte das respostas ao que está acontecendo.
Como alocar camas, respiradores, equipamentos para intubação? Como organizar leitos e seções nos hospitais? Como distribuir os recursos das forças de segurança pública? Como proteger grupos mais vulneráveis?
A gente precisa de bons dados pra isso. Fazer uma modelagem que considera sempre a mesma velocidade, um crescimento exponencial constante e daí predizer os resultados não gera bons dados, apenas causa caos. Amplifica o pânico que humanos já têm do desconhecido e da morte.
Então, ressaltando o que eu falei no começo:
Lave as mãos! Limpe as superfícies! Cuide das pessoas mais vulneráveis!

Seja responsável e ajude o coleguinha. Isso passa por comportamentos legais, mas por entender que nem toda informação por aí tem validade.
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