Sabendo disso, muito gente me dava bonecas de presente. Povo viajava, eu ganhava boneca; aniversário, várias bonecas.
E não pensem que eu desgostava. Muito ao contrário.
Ela era toda de porcelana, os detalhes todos pintados, a roupa belíssima. Fiquei sem reação.
Eu tinha uma penca de boneca diferente, mas nenhuma como aquela.
- Filha, a dona Cleo, nossa vizinha, quer muito que você fique com essa boneca. Ela ganhou ainda criança, foi o pai dela que trouxe de uma viagem da Europa. Mas você tem que cuidar bem dela, pois é uma preciosidades.
Parti para arrumar meu armário e conseguir um local de honra para ela. E eu passava o dia olhando aquele tesouro, e esperando uma oportunidade de agradecer dona Cleo.
E esse dia chegou.
Eu a vi de longe, sentada na sala, e corri para dar um abraço e agradecer pela boneca, e vi que dona Cleo estava tensa. Me afastando um pouco, ela disse.
- Filha, me desculpa por isso, mas quero a boneca de volta.
Sem conseguir falar mais nada, corri para a cozinha procurando minha mãe.
E contei tudo, entre lágrimas e soluços. Não queria perder a boneca.
- Mãe, mãe, que aconteceu?
- Filha, onde você viu dona Cleo?
- Na sala...
Fomos lá e não tinha ninguém... fiquei perdidinha... aí mamãe falou:
- Filha, não pode ter sido dona Cleo, porque ela morreu.
Dona Cleo, quando morreu, pediu para me entregarem a boneca, sabedora da minha coleção.
E foi uma correria na casa: chamaram meu pai, chamaram um padre, fizemos terço e tudo pela alma dela, e, no final, a boneca ficou.
E como teve reza, benção e tudo mais, decidiu não se desfazer da preciosidade.
Não vou negar que, no fundo, adorei que tenha sido assim, mas as coisas não ficaram tranquilas.
Passei a me sentir observada no meu quarto, como se alguém me vigiasse de noite. E junto com isso vieram uns pesadelos terríveis, que me atormentavam a vida, e sempre havia aqueles olhos de vidro me observando, e eu lembrando da dona Cleo.
Colocamos em uma caixa de presente, toda forradinha, e a boneca foi guardada em um armário e lá ficou, e realmente minha vida voltou aos eixos.
Com a boneca guardada, tudo se tranquilizou, e foi assim por anos.
Bem, com o tempo fui me desfazendo das bonecas. Cresci e grande parte delas foi doada para creches e escolinhas. Foram ficando somente aquelas que mais gostava, as mais raras e divertidas - e a boneca da dona Cleo, esquecida no fundo do armário.
Será que vi mesmo a dona Cleo? Será que não ouvi pelos corredores algum sussurro da morte dela e inventei tudo aquilo?
Duvidando de mim, fui procurar a boneca e me assustei quando abri a caixa...
Agora eu sabia reconhecer a arte que se usava para produzir boas bonecas e, bem, aquela era um primor.
Juro que me senti boba por ter deixado a boneca tanto tempo guardada por uma beateira, e decidi recolocá-la no armário.
Com eles, a sensação incomoda de ser vigiada de noite, como se houvesse alguém dentro do meu quarto.
Não falei nada a ninguém porque não quis parecer boba.
Mas aí, coisas estranhas aconteceram.
Certa manhã eu acordei e percebi que a boneca da dona Cleo estava fora do lugar.
Estranhei, mas lembrei que meu pai sempre acordava cedo e vinha me dar um beijo. Talvez ele tivesse mexido na boneca.
De noite resolvi perguntar a ele.
- Mexi sim, filha.
Isso me tranquilizou, mas aí tive um estalo.
- Por que você mexeu nela?
- Porque ela estava caído do lado da sua cama. Peguei e coloquei de volta no armário.
😳
Nenhuma chance dela estar no chão, ao lado da cama. Nenhuma, mas como explicar aquilo?
Aquela noite foi especialmente ruim. Os sonhos foram terríveis e não dormi nada.
E numa das vezes em que acordei, eu vi...
Eu já tinha olhado aquele canto do quarto no escuro e não tinha estranhado. Mas, agora, onde ficava meu cabide de roupas, havia uma forma estranha, diferente...
E cada vez mais ela ganhava forma e se parecia com uma pessoa!
Tentei rezar...
Pensei em gritar chamando meus pais... em me levantar e ligar a luz, mas nada acontecia... só aquela sombra ganhando forma no canto escuro.
De repente, tive a impressão de que a sombra se moveu, aí me cobri toda velozmente.
Gritei tanto, mas tanto, que não demorou um segundo para meus pais estarem ao meu lado me abraçando e me acalmando.
Não consegui dormir mais. Nem eu, nem ninguém.
Depois de tento tempo, descobri da pior forma que não tinha sido uma ilusão de criança.
Fazia tempo que sentia aquela sensação de desconforto, de estar sendo vigiada, e ninguém merecia viver daquela forma.
Esperamos o dia amanhecer para tomar providências.
Rezamos e fomos embora.
No meio da noite, ainda no sono nervoso do medo, acordei suando e vi dona Cleo parada diante do armário onde eu guardara sua boneca.
Quase enfarto com a mulher que ficou lá me olhando, sorrindo...
Fim
Essa história foi baseada no relato que aconteceu em João Pessoa, com a @alicevscncls_
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