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Uma conversa com amigos ontem aqui me deixou muito reflexivo sobre o início da nova direita brasileira e sobre o que realmente constitui um movimento político.

Seguem alguns registros da "história oral" do movimento e algumas reflexões.
A primeira coisa que me chama atenção é que muitas divisões supostamente ideológicas são muitas vezes uma uma mistura de disputa por protagonismo pessoal e confusões conceituais.
Por exemplo, lá no comecinho da "nova direita" não havia uniformidade ideológica alguma -- e talvez até o termo "direita" fosse forçado. Como o @FEscorsim conta na ótima série dele para a Gazeta do Povo, a coisa toda começou com um punhado de blogs interessados em cultura.
Esses autores não tinham nenhuma agenda política comum -- muitos não tinham, aliás, agenda política NENHUMA.

A única coisa que os uniam eram que, cada um a seu modo, eles eram todos não-petistas. Era o bloco dos "desalinhados", dos "intelectuais não-orgânicos".
Com o tempo, no entanto, esse bloco foi progressivamente dialogando mais entre si e criando uma série de iniciativas concretas.

E aí surgiram também as divergências. Algumas eram pessoais, outras eram ideológicas, geralmente tudo misturado.
Obviamente, as divergências pessoais geralmente ficam implícitas (exceto nas raras tretas públicas), já que pega mal ser ambicioso. Fica melhor na fita dizer que você está atacando alguém por representar valores superiores ao seu adversário.

É justamente aí que começa a...
... "inflação ideológica". As pessoas começam a ver teoria onde não existe. Cria-se um disfarce teórico para o que é meramente disputa de espaços.

Além disso, outro fator na "inflação ideológica" é que brasileiro adora abstração. Nessa época da "prequel" da nova direita...
... esse gosto por abstração gerou infinitas discussões de minúcias teóricas em grupos de e-mail e comunidades do Orkut. Acho que dá para falar em duas fases: a fase criativa, ou exploratória, entre 2000 e 2004, e a fase "nérdica", ou "argumentativa, entre 2005 e 2008.
Creio não ser controverso dizer que o QI médio da primeira fase era maior, o que gerava mais espaço para divergência. A segunda fase tinha gente empolgada em promover seu subgrupo, sua variação ideológica preferida. Foi aí que surgiram muitos dos "formadores de opinião" atuais.
A partir de 2008, começou um esforço maior de institucionalizar as iniciativas pulverizadas da segunda fase. Creio que é nessa época que a "prequel" termina e a "nova direita" realmente começa.

E essa é a parte que eu acho desafiadora: já havia um quebra-pau ideológico, mas...
... de algum modo, a coisa tinha também uma unidade difícil de explicar.

Foi nessa época, aliás, que eu me retirei como agente dessa história e virei apenas um observador. Mas não antes de participar (e até de iniciar) alguns dos grandes momentos dessa fase "ecumênica".
Na época, eu ainda estava engatinhando na carreira acadêmica e tirei uns meses para criar o"Liberdade na Estrada". A ideia foi comprada pelo Ordem Livre (na época, tocados @dgrcosta, @BrunoGarschagen e @FabioOstermann, se não me falha a memória).
O evento tacou no fogo na ala liberal do novo movimento. Ele conectou pessoas pelo Brasil todo, criando uma sensação de que não estávamos tão isolados. Muitas lideranças sugiram a partir dali e o começaram a surgir iniciativas realmente nacionais.
Curiosamente, essas tretas atuais da nova direita já estavam todas ali, em germe. O primeiro Liberdade na Estrada era, como falei, bastante "ecumênico". Diversas perspectivas estavam representadas ali. O objetivo era trazer ideias novas para dentro das universidades.
O @ASachsida, um dos primeiros liberais a apoiar Bolsonaro, estava presente, assim como o Rodrigo Constantino. Em um evento subsequente, para citar figuras que se tornaram conhecidas, estavam presentes o @silviogrimaldo, o Hélio Beltrão e o Ministro @rsallesmma.
Mas, apesar do ecumenismo, já existiam enormes focos de tensão. Foi aí que comecei a perceber o que eu chamo de "inflação ideológica", isto é, colocar teoria demais onde não precisava.

No fundo, a batalha era "jacobismo" e "isentões" já tinha começado.
Um exemplo da "inflação ideológica" foi quando se popularizou a distinção entre conservadores e liberais, dizendo que os primeiros defendiam a liberdade apenas na economia, enquanto os outros defendiam a liberdade em todas as instâncias, incluindo nos costumes.

Como expliquei...
... em outras ocasiões, essa distinção não faz sentido. O argumento completo é mais longo, mas eis uma versão resumida (posso descompactar depois). Essa distinção não descreve COMO os conservadores pensam, mas cria uma versão caricata mais facilmente criticável.
Na verdade, ela é uma "petição de princípio" sofisticada. Ela descreve todas as posições políticas em termo de "pró-liberdade" ou "anti-liberdade" porque, a partir daí, a vitória já está garantida para o lado liberal -- afinal, quem é que vai ser CONTRA a liberdade?
Mas isso é só um truque retórico, porque não lida diretamente com os argumentos do adversário, mas apenas com uma caricatura dele. Não é essencialmente diferente, por exemplo, do que a esquerda faz ao dizer que ser de esquerda é defender os pobres -- quem iria se opor a isso?
Enfim, esse tipo de simplificação conceitual, a meu ver, se tornou uma marca do que eu chamaria de "período institucionalizante" da nova direita. Cada nova organização precisava encontrar uma filosofia que justificasse sua existência diante das outras. Mas o "ecumenismo"...
... ainda era uma marca desse período. O movimento ainda era pequeno demais para se separar em grupos realmente independentes. Muitos dos "quadros" ainda eram jovens e estavam mudando de posição. O debate estava evoluindo rápido demais para adquirir estabilidade e profundidade.
E foi aí que, de repente, essa nova onda de contra-cultura vazou para o "mundo real": com os protestos de 2013 e a re-eleição apertada de Dilma em 2014, ficou óbvio algo que Olavo de Carvalho está avisando há anos -- o povo brasileiro queria uma opção à direita.
Obviamente, o grande problema aí é justamente definir o que é essa -- já que a nova direita não tinha unidade ideológica nem estava organicamente conectada com a velha direita.

Porém, Dilma ofereceu uma solução temporária para esse problema: sua impopularidade gerou uma...
... oportunidade -- havia um "mercado" para direitismo, mesmo que fosse um mero direitismo vago e pouco definido. Muita gente nova entrou na onda

O PT ofereceu um inimigo mungo que pacificou temporariamente as divergências.

(Parece que cheguei no limite. Continuo depois).
(Continuando e corrigindo o tweet anterior).

O PT ofereceu um inimigo comum que pacificou temporariamente as divergências. Mas, assim que o PT caiu, as tretas recomeçaram.

Muitas dessas divergências superficiais ressurgiram logo em seguida.
A divergência mais enganadora foi justamente a rígida divisão entre liberais e conservadores. Os termos em inglês possuem sentido bem diferente, onde "liberal" deveria ser, na verdade, traduzido por "progressista". Mas a base do movimento liberal brasileiro não é progressista.
O progressismo no sentido "anglo" não é exatamente individualista nem pró-mercado. Acho que até dá para fazer uma uma conexão entre ele e o liberalismo clássico, mas o contexto cultural é totalmente diferente do brasileiro, gerando objetivos políticos totalmente distintos.
O liberalismo brasileiro cresceu sob um estado pesado e em oposição ao discurso socialista. Além disso, o povo brasileiro nunca ligou para discurso politicamente correto. Logo, o liberalismo nacional nasce com prioridades bem distintas do progressismo do primeiro mundo.
A vacuidade dessa distinção entre "conservadores" e "liberais" se revela justamente no governo Bolsonaro. Na época da campanha, o Livres estava em uma batalha de vida e morte contra esse grande inimigo da liberdade. Mas agora vários quadros do movimento estão no governo.
Ou seja, isso mostra que a distinção ideológica estava sendo exagerada para esconder uma disputa por espaços. A diferença muito mais entre estilo de comunicação e personalidade do que entre programas políticos.
Por isso mesmo, acho que a qualidade do debate evoluiu muito quando as pessoas foram deixando de lado esses rótulos mais abstratos e usando termos mais concretos.

Eu acho que termos como "isentões" e "redpilados" ou "jacobinos", por exemplo, representam uma evolução...
... pois indicam características mais concretas da realidade. Fica mais fácil identificar as "tribos" reais e suas diferenças programáticas.

Por exemplo, um "redpilado" é alguém que está disposto a defender o governo e que não se preocupa com o ônus social que...
... vem de defender opiniões fora do mainstream. Um "isentão" é alguém que pode até partilhar dos mesmos valores do "redpilado", mas que quer encontrar um jeito de ir subindo na estrutura atual do poder. Em termos socialistas, é a diferença entre o reformista e o revolucionário.
Além de revelar diferenças psicológicas e estratégicas, esses termos também revelam diferenças programáticas -- fica fácil ver quem está priorizando defender o governo e quem preferia que outro grupo assumisse o protagonismo. Fica mais honesto do que rótulos ideológicos.
Embora discussões ideológicas sejam importantes, elas são abstratas demais para explicar dinâmicas no dia-a-dia da sociedade. Não é "o liberalismo" que assume a presidência. É fulano de tal que assume o cargo. É sempre uma pessoa concreta que age.
É perfeitamente possível que fulano e sicrano concordem nos princípios gerais e discordem nos meios concretos de executar esses princípios.

Logo, é preciso descer dessas abstrações ideológicas e entrar em discussões mais concretas, mais pessoais.
Acho que isso já está ocorrendo, aliás, o que é muito saudável. Uma coisa que tenho notado é que, nos últimos anos, quase ninguém mais quer criar institutos ou organizações. A própria dinâmica das redes sociais incentivam quem fala em nome próprio. Isso é excelente.
Estou super-cansado, então vou ficar por aqui.

Espero, aliás, incentivar os outros participantes dessa história a contarem suas versões da história.

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