#MachadodeAssis
#PaiContraaMãe
#Literatura
_"Pai contra a mãe" (1906)
_ Machado de Assis (1839-1908)
_A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. [01/25]
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. [06/25]
_Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, [09/25]
_Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. [11/25]
_Cândido Neves, — em família, Candinho, — é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, [13/25]
— Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
— Não, defunto não; mas é que... [25/25]
— Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. [26/50]
Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. [27/50]
_Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. [29/50]
— Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. [30/50]
— Vocês verão a triste vida, suspirava ela. [32/50]
— Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco...
— Certa como?
— Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo? [33/50]
— A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. [34/50]
— Bem sei, mas somos três.
— Seremos quatro.
— Não é a mesma coisa.
— Que quer então que eu faça, além do que faço? [35/50]
_Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. [38/50]
_Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis.[42/50]
— É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. [47/50]
_Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. [48/50]
_A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. [49/50]
— Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! [50/50]
— Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? [53/75]
_Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. [55/75]
— Quem é? perguntou o marido.
— Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
— Não é preciso...
— Faça favor. [57/75]
— Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. [60/75]
_A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. [62/75]
_Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. [65/75]
_Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. [67/75]
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. [71/75]
_Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; [74/75]
— Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. [75/75]
— Mas...
_Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. [78/93]
— Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. [79/91]
— Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, [81/93]
— Siga! repetiu Cândido Neves.
— Me solte!
— Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. [82/93]
— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
_Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. [84/93]
— É ela mesma.
— Meu senhor!
— Anda, entra...
-Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. [87/93]
_Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. [90/93]
— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. [93/93]
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