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O MITO DO DESEQUILÍBRIO QUÍMICO COMO CAUSA DAS DOENÇAS MENTAIS.

O @professorguilh2 perguntou: "Qual a terra plana da sua área de conhecimento?"

Eu respondi: “Os remédios psiquiátricos ajustam desequilíbrios químicos cerebrais causados pelas doenças mentais”

Entenda por que 👇🏾
A Psiquiatria é fascinada com a ideia de encontrar desequilíbrios nas substâncias cerebrais que expliquem os transtornos mentais. Uma das formas de investigar isso, antes da descoberta dos psicofármacos clássicos (em meados do século XX) foi por meio de drogas psicoativas.
Já houve, por exemplo, modelos para explicar as psicoses (como a esquizofrenia) baseadas nos efeitos da maconha, da mescalina, da cocaína, das anfetaminas, do LSD, da DMT e da fenciclidina (angel dust). Nenhum deu conta de explicar completamente o fenômeno.
Quando os grandes grupos psicofarmacológicos (antipsicóticos, antidepressivos, estabilizadores de humor e sedativos benzodiazepínicos) foram descobertos, essa ideia se renovou. Seu princípio era simples e até mesmo óbvio, a partir do entendimento do que estas drogas faziam:
Se um determinado remédio afeta os neurotransmissores de uma certa maneira, isso significaria que no cérebro de quem está acometido pelo transtorno tratado por esse medicamento haveria um desequilíbrio químico no sentido contrário... certo?
Por exemplo, se os antidepressivos são substâncias que aumentam, de diversas formas, as concentrações de dopamina, noradrenalina e/ou serotonina, isso significa que a depressão é causada pela falta destes neurotransmissores no cérebro, né? Pois então... NÃO.
Embora tentadora, respostas elegantes e excessivamente simples, quando estamos falando do cérebro e do comportamento humanos (coisas que não são sinônimos) tendem a ser totalmente erradas.
Não existe evidência, para a imensa maioria dos transtornos mentais, de que o cérebro das pessoas acometidas seja tomado pela falta ou excesso das substâncias que são aumentadas ou diminuídas pelo remédio.
Mesmo quando existe uma evidência parcial, não é possível explicar o fenômeno de maneira completa em todos os casos por meio desta hipótese explicativa. No caso da depressão e da ansiedade, transtornos mais prevalentes, sabemos que esse modelo é uma imensa asneira.
Há absurdos maiores, como no caso dos portadores de transtornos afetivo bipolar, que podem ser tratados com sais de lítio, e aos quais às vezes se diz que 'falta lítio' no organismo deles. Isso é uma imensa balela, pois no corpo de qualquer um o lítio é praticamente indetectável.
A ideia do desequilíbrio tratado pelos remédios é tão disseminado que por vezes é tomado como verdade, ensinado nas faculdades e, como se pode ver nesse link, disseminado por colegas psiquiatras.
doctoralia.com.br/perguntas-resp…
Uma das razões para a ideia ser tão prevalente é porque ela foi ativamente divulgada pela indústria farmacêutica para vender uma ideia simples de como seus medicamentos psiquiátricos funcionavam.
huffpostbrasil.com/michele-muller…
Para quem estuda seriamente a Psicofarmacologia, isso não é novidade alguma. Há pelo menos uma década essa ideia já é considerada antiquada. Mas ela perdura pela sua eficiência como 'meme', como ideia auto-reproduzida. E também porque atende às necessidades da Big Pharma, claro.
Vale a pena ler esse artigo da @revistapiaui de 2011 em que Marcia Angell, que foi editora do incensado New England Journal of Medicine fala da suposta epidemia de transtornos mentais, algo muito lucrativo para a indústria farmacêutica.
piaui.folha.uol.com.br/materia/a-epid…
Se você tem interesse de aprofundar seu estudo no assunto, vou recomendar dois artigos acadêmicos:

1. 'The chemical imbalance explanation of depression: Reducing blame at what cost?'
Deacon & Baird
Journal of Social and Clinical Psychology, 2009
guilfordjournals.com/doi/10.1521/js…
2. 'The Media and the Chemical Imbalance Theory of Depression'
Leo & Lacasse
Society, 2008
link.springer.com/article/10.100…
Bem, isso leva a duas perguntas que eu preciso responder rapidamente, antes de terminar esse cordel. A primeira é 'Então o que causa os transtornos mentais?'. A resposta mais curta e direta para esta pergunta, nesse caso, é humilhantemente simples: AINDA NÃO SABEMOS.
Sabemos de um monte de fatores de risco - biológicos, psicológicos ou sociais - estão associados, não ainda não sabemos (e talvez isso seja bom) prever qual combinação de cada um deles levaria inevitavelmente aos transtornos mentais mais conhecidos.
Há, claro, exceções. Certas doenças genéticas - como a coreia de Huntington - ou infecciosas - como a neurossífilis - são fatores suficientes para causar transtornos mentais. Ainda assim ainda falta muito para entender COMO essas fazem isso e geram especificamente os sintomas.
A segunda pergunta é 'Então os remédios psiquiátricos são absolutamente inúteis, uma enganação?'. Essa resposta também é bastante direta: NÃO. Os remédios psiquiátricos, quando usados com parcimônia e sabedoria, são sim úteis, e podem ajudar na vida das pessoas.
Sabemos que algumas alterações de neurotransmissores provavelmente levam a melhorar (e por vezes, piorar) sintomas mentais. Isso já é bastante útil se usado com cuidado. E nunca um transtorno mental poderá ser reduzido somente à neuroquímica cerebral - e AINDA BEM QUE NÃO.
Há risco quando nos fascinamos com nossos brinquedos e não lembramos que eles podem causar efeitos indesejáveis. Há alguma evidência recente e ainda fora do mainstream que sugere até que alguns sintomas da esquizofrenia poderiam ser causados pelos remédios usados para tratá-la.
Mas isso é infelizmente assunto para outro cordel. Por hoje é importante dizer que o ideal é que você que faz uso de psicofármaco esteja SEMPRE dialogando com sua/seu médica/o em busca da menor dose possível de remédio - mas sem interromper irresponsavelmente seu tratamento.
Para concluir, como o @olavoamaral apareceu para comentar o post original, quero divulgar um artigo dele também na @revistapiaui, de 2015 (e infelizmente ainda fechado) sobre o poder da propaganda farmacêutica nos congressos psiquiátricos.
piaui.folha.uol.com.br/materia/intoxi…
Olha aí, @erahsfeliz, bora refletir se os psicofármacos não seriam também uma forma, se usados erroneamente, de aplacar as pulsões da humanidade... tem o álcool (sobre o qual concordo com suas ponderações) mas tem também os calmantes e os antidepressivos... 😉
@professorguilh2 Muita gente não está lendo o fio todo e está entendendo que eu estou afirmando que remédios psiquiátricos não funcionam.

REMÉDIOS PSIQUIÁTRICOS FUNCIONAM, desde que indicados corretamente, podem salvar vidas.

Meu ponto é apenas criticar a metáfora usada para seu funcionamento.
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