Thread by @lucasmafaldo

Eu já falei sobre isso, mas gosto de me repetir: acho que monarquia é um negócio mal-compreendido tanto pelos monarquistas quanto anti-monarquistas.

As pessoas são formalistas demais. Elas pensam: "ah, sou favorável à monarquia constitucional, tipo tal país europeu" ou "sou contra, porque é preciso respeitar o princípio da impessoalidade.

As duas posturas têm algo em comum: são posições sobre como o mundo DEVERIA ser.

As monarquias evoluíram organicamente porque se baseiam em algumas características universais da sociedade: propriedade/autoridade, lealdade, divisão de tarefas e hereditariedade. Essas quatro coisas existem até no reino animal.

O primeiro princípio é o seguinte: existem coisas/decisões que têm dono. Não porque "deveria ser assim", mas porque efetivamente sempre existe alguma estrutura de controle no mundo. Vai ser uma pessoa ou um grupo de pessoas que toma decisão. Constituição não toma decisão.

O terceiro princípio (errei a ordem, eu sei) é que é preciso dividir as tarefas. Não dá para uma pessoa fazer tudo. Todos temos talentos diferentes e, por isso, criamos acordos (formais e informais) para maximizar esse talento.

O mercado oferece um jeito formal de fazer isso...

... mas há acordos tácitos que são importantes também (família, amizade, comunidade), porque nem tudo dá para ser monetizado (veja a teoria da firma do Coase para entender o porquê). Por isso, nós criamos tribos ou clubes com papéis mais ou menos diferentes.

Isso gera o segundo princípio, que é o de lealdade. Para a tribo sobreviver, é preciso que ocasionalmente se faça sacrifícios. Os soldados assumem um risco desproporcional e são recompensados ao serem tratados como heróis. Se eles não forem para a guerra, a tribo acaba.

O quarto princípio é a hereditariedade: nós transmitimos nossa carga genética, modo de pensar, posses e contatos sociais aos nossos filhos. Logo, é natural e inevitável que as gerações seguintes sejam parecidas com as anteriores.

Vejam que não estou falando em "sistema de...

... governo". Estou dizendo que o filho do padeiro provavelmente herdará a padaria, que o filho do violeiro provavelmente aprenderá a tocar violão ainda cedo.

De novo, isso ocorre mesmo no reino animal: o filho do macho alfa herdará no mínimo alguns traços genéticos.

Por isso, as histórias com monarquia causam um impacto tão forte em nós: elas refletem valores que sustentam a vida social. Mas não é exatamente pelo aspecto "monarquia", mas pelos valores que vieram ANTES da monarquia como sistema formal e são independentes dela.

O que é legal, por exemplo, no Senhor dos Anéis, é ver os nobres dispostos a dar a vida pelos camponeses. A graça aí não é vê-los debatendo noções abstratas na Câmara dos Lordes, mas a disposição real em morrer pelos outros. É a lealdade que nos afeta nessa cena.

Se você separa os valores dos sistemas de governo, você percebe o seguinte: em TODO SISTEMA esses valores ainda vão afetar as pessoas, mesmo que formalmente eles não sejam reconhecidos. Ou seja, essas "dinâmicas dinásticas" (como eu nomeie outro dia) SEMPRE EXISTEM.

As pessoas, por exemplo, criticam Bolsonaro e Trump por se cercarem de parentes. Mas é inevitável que seja assim -- é a natureza do poder. Se qualquer um de nós recebe mesmo uma oferta do empreguinho mais simples do mundo, a gente naturalmente conversa com a esposa ou até com...

... com amigos e parentes, para se aconselhar do que fazer. Formalmente, seu amigo ou mãe não tem nenhuma relação com o empregador, mas a relação de confiança nesse caso traz um valor específico.

Quando o peso do cargo aumenta, a importância das relações de confianças...

... crescem ainda mais. O mesmo ocorre mesmo com bilionários, atletas, músicos, etc. Se uma pessoa está na posição de movimentar recursos em uma escala inédita, essa rede informal se torna AINDA mais valiosa, porque as pessoas poderão lhe oferecer uma perspectiva diferente.

Além disso, os projetos anteriores dessas pessoas talvez sejam bem menos do que o "valor adicional" que elas podem gerar em lhe ajudar.

Veja que não estou dizendo que isso é bom ou ruim: estou dizendo que isso é a natureza. Algo disso sempre vai existir.

Claro que vale a pena construir instituições formais para conter os problemas que a natureza humana pode causar. Porém, muita gente não entende isso, e espera que as instituições ALTEREM a natureza humana. Isso é certeza que não vai dar.

Por isso, eu não sou nem contra ou a favor da monarquia. Mas eu sou a favor do seguinte: a gente precisa compreender a importância dessas "dinâmicas dinásticas" -- antes de existir um chefe de estado, é preciso existir líderes, relações de confiança, etc. E isso é muito mais...

... importante no nível "micro" do que no nível político. Em vez da gente se preocupar muito com política, precisamos nos preocupar em sermos bons parentes, bons colegas e bons amigos. A nossa comunidade local é onde podemos servir -- logo, é aí onde podemos ser "barões".