Thread by @lucasmafaldo

Como eu falei ontem, o que me incomoda mais no debate público brasileiro é a desconexão com a realidade. Não é que tem um lado certo ou errado. É que as pessoas vivem uma coisa e falam em outra.

Estou convencido que a gente nem consegue enxergar direito o que está acontecendo.

Esse desconexão tem duas etapas. Na etapa 1990 até 2013, 99% dos intelectuais em postos oficiais estava justificando variantes do projeto socialista. Havia dois grupos fundamental socialistas e não-socialistas.

De 2013 para cá, os não-socialistas assumiram a dianteira.

O problema é que os não-socialistas não são uma unidade. São o grupo dos previamente excluídos. E, depois de muito tempo no deserto, voltaram com muita sede ao pote.

Não há uma visão coerente, quadros formados ou projetos alternativas. Só uma corrida desesperada pela relevância.

Essas disputas entre jacobinos, isentões, liberais, isentolefts, etc. é uma mistura de (i) diferenças ideológicas reais que não tiveram tempo de serem trabalhadas; (ii) disputa pessoal por espaço (público, cargos, verbas, etc.).

Como ainda está muito cedo, a ascenção dos não-socialistas foi muito recente, ainda está tudo muito misturado. Não tem uma fronteira clara entre o que é lealdade grupal, interesses pessoais e diferenças de valores. O campo ainda está muito confuso.

Tem gente apegado a fórmulas abstratas ("o verdadeiro Xismo é assim ou assado"), outros querendo pertencer a certos grupos ("sou bonzinho, eu juro", "sou sofisticado, prometo"), outros querendo cargos, outros empolgado com fórmulas abstratas ("sou contra todo autoritarismo", etc)

(outro problema ainda é a importância de fórmulas estrangeiras, como brasileiros imitando republicanos ou progressistas -- nenhum dos dois faz sentido).

Acho que precisamos ter um período de descrição. Tentar entender o que diabos está acontecendo de específico e particular na sociedade brasileira.

Quando eu penso nisso, eu vejo uns problemas mais sérios e quase supra-ideológicos.

O primeiro é que boa parte do país é obviamente um "failed state", isto é, um lugar onde o estado simplesmente perdeu o controle do território.

Uma coisa é ter alto nível de criminalidade, outra é ter poderes paralelos rivalizando com o estado.

Talvez o sul do país possa...

... ser considerado um lugar com criminalidade alta. Partes do nordeste (como o Ceará, meu próprio RN) já estão em outro nível: o estado efetivamente acabou em algumas regiões. O Rio parece ter áreas assim também.

Outro problema é os fatores sociais que permitiram que isso ocorresse. Outro problema é que a estratificação social brasileira é bem mais intensa do que a mera divisão por nível de renda. Tem partes enormes da sociedade FORA do sistema formal. A ordem oficial nunca foi...

... muito forte entre nós. Do lado do extremo formalismo, sempre teve um monte de "áreas cinzas". E não falo apenas de corrupção, mas de mera informalidade mesmo, às vezes causada pela dificuldade de regularizar algo (como imóveis irregularizados há décadas, mas funcionais).

Parte dessa super-informalidade é reforçada por uma imensa lumpen-proletização sociedade brasileira. Existe pobreza digna, como praticamente todas meus antecedentes tiveram no interior: nenhum luxo, mas um mínimo de segurança, estabilidade social, etc.

O "lumpen" é outro nível..

... é uma situação de tanto desamparo que cria um ambiente de desregulação emocional e de instabilidade social que impede o mínimo de saúde mental para ter uma pobreza digna. Partes imensas da sociedade estão nessa situação.

Além disso, o presença desse elemento de caos...

... vai criando traumas constantes mesmo em quem está fora da zona de caos, tornando as relações mais tensas, mais combativas e, portanto, menos produtiva. A sociedade de confiança vai acabando.

Além disso, na medida em que a criminalidade aumenta, as pessoas ficam mais em...

... casa e, portanto, mais na internet, mais claustrofóbicas e mais irritadiças. É um ciclo vicioso. É por isso mesmo que se pensa tanto em política: presos dentro de casa, as pessoas ficam assistindo o espaço público como telespectadores passivos, incapazes de agir concretamente

Quando conseguem agir, é sempre desse modo ineficiente de passeatas. É um modo válido, claro, mas não há canais óbvios para canalizar essa revolta em ação. As eleições simplesmente não funcionam direto. Não existe um mecanismo de sanção adequado na política.

A parte tecnocrática do estado-br funciona até relativamente bem, especialmente nos níveis mais altos (nos níveis municipais, só em poucas cidades), mas ela é por natureza impotente para reformar a sociedade em geral e a política. Mas como o número de talentos é pequeno, eles...

... acabam sendo quase todos capturados pela tecnocracia, por causa dos bons salários, estabilidade, etc., e eles ficam faltando em outras áreas da sociedade.

O Brasil então tem um desafio enorme: precisa reverter a lumpenproletização, criar gente competente e estabilizar os laços sociais antes de ter quadros suficientes para administrar a máquina pública. Porém, como a máquina pública esmaga tudo, fica um problema ovo-galinha.

Dito isso, eu ainda acho que as coisas melhoram, porque antes esse paciente moribundo estava infectado de socialismo e caminhando para uma venezualização. O problema é que, tendo escapado dessa, tem mais umas 353 infecções seríssimas.

Eu acho que não existe remédio mágico para tanto problema, mas acho que o voto distrital poderia ser uma GRANDE ajuda. Como ele, o parlamento ficaria menos caótico e a coisa melhoraria um pouquinho.