Thread by @P_droMenezes

Com o surgimento da pandemia, o presidente americano, republicano da ala mais ideológica do partido, ignora os apelos de especialistas por muito tempo. Tentou tirar o atraso depois que a coisa ficou feia, mas era tarde demais.

Trump? Não. Me refiro a Ronald Reagan.

Segue o fio:

Essa história começa com macacos de Kinshasa (RD Congo), ao redor de 1920, que sofriam com o vírus da imunodeficiência símia (SIV). Via chimpanzés, o vírus se tornou capaz de infectar humanos.

Assim nascia uma das piores pandemias da história: a AIDS, causada pelo vírus HIV.

Nos primeiros 60 anos, diversas descrições de doenças similares à AIDS surgiram na região de Kinshasa. O registro mais antigo do vírus é de 1959, mas só foi descoberto anos depois. Essa história ficou desconhecida por várias décadas, até que alguns haitianos voltaram do Congo.

No início dos anos 1980, uma doença estranha e desconhecida passou a matar gays americanos em grande escala. Infecções incomuns quebravam a cabeça dos médicos, que começaram uma campanha para transformar o assunto em prioridade.

O que fez o governo Reagan? Piadas homofóbicas.

O jornalista Lester Kinsolving é um dos muitos heróis nesta história. Num tempo em que até a imprensa minimizava a "praga gay" (o nome AIDS não existia), Lester passou anos perguntando à Casa Branca sobre o assunto.

Larry Speakes, porta-voz de Reagan, tratava o assunto rindo.

Lester voltou a perguntar sobre o assunto em diversas ocasiões. Os diálogos com o porta-voz de Reagan eram sempre parecidos.

Em algum momento, o porta-voz sempre sugeria que Lester estava obcecado porque era gay e tinha a doença. Outros jornalistas riam. Ninguém se importava.

O diálogo abaixo ocorreu em 1984, quando mais de 4 mil pessoas já tinham morrido de HIV. Em geral, gays. As piadas seguiam as mesmas. Após a pergunta de Lester, um jornalista brinca que o presidente pode proibir beijos na boca. Na Casa Branca, a AIDS era tema p/ piada homofóbica.

Além de Lester, outro herói desconhecido desta história é o médico Marcus Conant, da Universidade da California em São Francisco. Ele foi um dos primeiros a diagnosticar a AIDS nos EUA e passou anos pressionando o governo Reagan por uma resposta à pandemia.

Em entrevista ao The Guardian, Conant relatou 2 encontros com representantes do governo, todos com desfecho semelhante.

No primeiro, ao encontrar o assessor de Reagan responsável por questões de saúde, Conant ouviu que a AIDS era uma questão legal, ao invés de médica.

Na época, a AIDS era conhecida como uma doença que atingia 4 H's: haitianos, homossexuais, hemofílicos e usuários de heroína. Proteger esses grupos não era prioridade de governo nenhum. "Essas pessoas estão descumprindo a lei", disse o assessor de Reagan na reunião com Conant.

No segundo encontro de Conant com representantes do governo, o médico Edward Brandt Jr., responsável pelas políticas de saúde do governo Reagan, abriu a reunião dizendo "vocês foram os primeiros homossexuais que eu conheci na vida".

Na época, diversas organizações LGBT tentavam se aproximar do governo. Numa ocasião, convidaram Brandt para entregar um prêmio a grupos que lutavam contra a AIDS. Ele aceitou, mas não compareceu, cedendo aos protestos de grupos "pró-família" que estavam na base do governo Reagan.

O que Ronald Reagan dizia sobre a AIDS nessa época? Absolutamente nada.

O presidente americano passou o primeiro mandato todo sem sequer mencionar a AIDS em discursos. A primeira menção foi em 1985, depois de muita polêmica e pressão da comunidade LGBT.

O governo americano só entrou de cabeça na luta contra a AIDS durante os últimos anos do governo Reagan, quando já era impossível ignorar a pandemia do HIV.

Coincidentemente, também foi quando Reagan já não precisava dos votos conservadores para se reeleger.

Paul Volberding, outro dos médicos que lideraram a luta contra o HIV em São Francisco, não vê Reagan como um homofóbico e acredita que o ex-governador da Califórnia tinha amigos soropositivos.

"Foi um cálculo político. Priorizar o assunto não era aceitável para seus eleitores."

Eu, Pedro, sou filho de um obstetra formado no início dos anos 1980. Por sinal, foi ele quem me contou essa história do Reagan.

Certa vez, perguntei a ele: "Pai, qual o maior avanço tecnológico da medicina durante sua carreira"

A resposta foi imediata: "Os tratamentos de AIDS"

Ele me conta que, quando começou a carreira, AIDS era uma sentença de morte. Diz que o preconceito era semelhante no Brasil e comemora como a tecnologia foi capaz de dar dignidade aos soropositivos.

O problema é que esses avanços ocorreram tarde demais para muita gente.

Apesar das centenas de mortes que começaram ainda no fim dos anos 1970. O vírus HIV só foi descoberto em 1983. Os principais remédios só surgiriam ao longo dos anos 1990 e 2000. O preconceito seguiu: até 2010, estrangeiros soropositivos eram proibidos de entrar nos EUA.

Meu objetivo com essa thread não é condenar a imagem de Reagan, nem estou escrevendo que a direita americana é culpada pela AIDS. A realidade é mais complicada. Noutros debates da época (URSS, por exemplo), era Reagan quem tinha razão e a esquerda defendia o indefensável.

Mas Reagan cometeu um erro crasso, nojento. E os conservadores deveriam reconhecer seus erros e aprender com eles.

Quantas vidas teriam sido salvas se Reagan enfrentasse o eleitorado conservador para proteger a população LGBT? Muitas, e não só nos EUA.

Esse "erro" (que pode até ser chamado de coisa mais pesada) já aconteceu na esquerda também.

Durante o próprio governo Reagan, houve Chernobyl, outro caso no qual conveniências do poder levaram políticos a ignorar os alertas de especialistas, levando à morte de milhões.

O aprendizado que esta história deixa, principalmente num tempo de nova pandemia, é este: políticos precisam levar pesquisadores e especialistas a sério.

O estadista é alguém capaz de mover sua militância na direção certa, ao invés de se afastar do q é certo para agradar a base.

Quando essa pandemia de Covid-19 passar, ainda enfrentaremos o aquecimento global, a perda acelerada de biodiversidade e o desmatamento amazônico.

Será que meu filho fará uma thread sobre como Bolsonaro ignorou os alertas sobre a savanização da Amazônia desmatada? Não duvido.

Entre as ONGs que surgiram nos anos 1980 para conscientizar governos sobre a AIDS, uma das mais famosas é a Avert, de onde tirei as informações sobre a origem e história da pandemia de HIV, além de pesquisas sobre o assunto.

Acessem para + informações:

avert.org/professionals/…

As declarações dos médicos envolvidos na luta contra o HIV vieram desta reportagem do Guardian:

theguardian.com/us-news/2016/m…

Os diálogos com o porta-voz de Reagan estão nesta outra, da Vox: vox.com/2015/12/1/9828…

Desde os anos 1980, a OMS estima que a pandemia de HIV/AIDS infectou 75 milhões de pessoas, com 32 milhões de mortes.

Quais seriam os números se o governo Reagan tivesse escutado os especialistas? Qual foi o custo humano das piadinhas homofóbicas da Casa Branca? Nunca saberemos.