Thread by @lucasmafaldo

O cientificismo parece estar em alta no debate brasileiro. Como eu falei ontem, no entanto, o negócio se resume a atitute boba de deslumbramento intelectual.

O primeiro problema, e mais básico, é que a ciência não é um conjunto de verdade absoluta, mas apenas um conjunto...

... de procedimentos que aumentam as chances de raciocinar corretamente sobre um assunto.

Esses procedimentos são certamente valiosos, mas eles não impedem que diferentes especialistas tenham opiniões diferentes sobre os assuntos da própria área.

Além disso, as divergências...

... não apenas entre pessoas, mas ocorrem também ao longo do tempo: na medida em que as investigações avançam, as novas gerações de pesquisadores abandonam posições anteriores diante de novos indícios, modelos, instrumentos, etc.

Só isso, já deveria matar o cientificismo, mas...

... ainda tem mais. O conjunto de coisas que pode ser conhecido cientificamente é, por definição, bastante estreito. A ciência simplesmente não tem nada a dizer -- nem contra ou a favor -- de teses que não cabem no método científico.

E tem um montão de coisas que entram...

... nessa categoria, incluindo os valores que usamos para guiar nossas vidas.

E o problema ainda aumenta: há uma diferença entre "a ciência" e "membro de instituição científica". No primeiro caso, temos procedimentos importantíssimos. No segundo, temos um sujeito de carne...

... e osso como qualquer outro. O que significa: alguém sujeito à pressão grupal, carreirismo, conformismo, etc. Portanto, não dá para acreditar que a validade do instrumento se transmite automaticamente para qualquer portador de diploma.

Além disso, há também uma distância...

... entre o que um acadêmico pensa e aquilo que é a posição oficial de uma instituição técnica. Entre a opinião individual dos especialistas e a formação do consenso, há necessariamente uma etapa política: os diferentes pontos de vista DENTRO da comunidade vão disputar...

... espaço interno, enquanto consideram os impactos dessas posições FORA da instituição.

Ou seja, é ingenuidade demais achar que acadêmicos são pensadores puros, envoltos em um nuvem de racionalidade. Eles, na verdade, fazem parte de uma carreira extremamente competitiva e...

.. hierarquizada, onde alianças políticas fazem enorme diferença na trajetória de sucesso.

Portanto, embora essas instituições realmente concentrem muitos recursos e talentos importantes, não há porque achar que elas podem servir como autoridades absolutas, pairando acima...

... da política. Elas estão sujeitas ao mesmo jogo de força de valores, interesses e visões de mundo que pesam sobre as pessoas que estão fora delas.

Portanto, nada mais surpreendente que elas tenham pontos-cegos enormes -- como foi, aliás, o fato de terem subestimado o corona.

Essa ideia de que agora é preciso "valorizar os especialistas" é, portanto, apenas um lugar-comum vazio. Os especialistas SEMPRE foram muito valorizados, especialmente no Brasil, onde a raiz positivista nos deixou com uma verdadeira tara tecnocrática.

Além disso, o lugar-comum de que é preciso "valorizar os técnicos" jamais ocorre em um vácuo político. Via de regra, o que está implícito é: "parem de ouvir os defensores de X e ouçam os técnicos que defendem Y, que é minha opção preferida".

Ou seja, o argumento tecnocrata é...

... no fundo, um jeito de VENCER o debate político de modo anti-democrático e autoritário: afirmando que a sua própria posição está acima do debate, pois ela vem da diretamente da Ciência.

No momento atual, a coisa toda passa do ridículo ao irritante quanto é óbvio e patente...

... que a OMS fez uma trapalhada atrás da outra em relação ao coronavírus. O mundo inteiro está agora tendo que tomar medidas que irão causar enorme dano social justamente porque a organização passou semanas preciosas diminuindo o tamanho do problema.

Sem falar, é claro, na...

... fake news auto-contraditória de que "não deveríamos usar máscaras, pois elas não funcionam -- e, aliás, os médicos precisam delas".

O deslumbre cientificista é tão grande que muita gente nem percebeu a contradição óbvia que servia apenas resolver o problema imediato da..

... falta de estoque de máscaras.

Por fim, embora eu não seja exatamente um "nassimtabelista", ele acertou ao mostrar que o modo de funcionamento dessas burocracias não serve diante de riscos dinâmicos e emergentes.

Minha versão dessa crítica é a seguinte:

O tipo de personalidade valorizado por esse tipo de instituição acaba sendo abstrato demais para lidar com a realidade (e, aliás, falo como alguém que passou duas décadas nisso e depois descobriu como se reinventar do lado de fora).

O problema é que essas pessoas ficam MUITO....

... em criar modelos que explicam o que está acontecendo, mas depois passam tempo demais discutindo os detalhes do modelo. O objetivo é ver quem tem a explicação mais inteligente do mundo -- uma receita para "overthink", pensar demais.

No mundo real, é muito melhor agir e...

... se adaptar de acordo com o contexto. Nenhum caçador encheu a barriga passando horas planejando a caçada. Quem tem resultados é quem fica alerta ao que está FORA dos seus modelos anteriores.

Por isso, eu sempre digo que o momento de fazer análise custo/benefício era...

... errado lá em janeiro, porque o custo do seguro (fechar fronteiras) era desproporcionalmente mais barato do que o custo de não agir (fechar todas as casas).

É como se, naquele momento, você estivesse no meio de uma viagem de carro em um terreno montanhoso e decidisse...

... não comprar um seguro de vida e automóvel porque não estava claro se o preço oferecido compensava.

Pessoas concretas, que tomam risco todo dia, sabem tomar essas decisões de modo intuitivo, porque se errarem elas vão à ruína.

Instituições gordonas, no entanto, não...

... sabem tomar essas decisões, pois elas não serão afetadas diretamente por isso. O risco de parecer politicamente inconveniente nessas carreiras é MUITO maior do que o de tomar uma decisão errada.

Portanto, a confiança geral na sociedade de especialistas é diretamente...

... responsável pela dureza desses dias. Deslocamos a autoridade para pessoas que não podem ser responsabilizadas - a receita perfeita para a inação diante de grandes ameaças.

E, agora que o caos está instalado, não temos boas opções. Mas não vejo porque redobrar a oposta nisso.