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Moro num prédio antigo inaugurado em 1956, bem no centro de Belém.

Igual ao prédio, diversos moradores são idosos cheios de histórias. Frequentemente brota no elevador um anúncio de falecimento, e “lá se vai mais um velhinho”, pensamos todos.
Quando falo em velhinhos vocês devem automaticamente imaginar figuras fofas de cabelos brancos, quase feitas de arco-íris, mas nem todos são assim...
Por aqui tem o velhinho da salsa e merengue, sempre pronto a dançar em Cancun, conquistando os brotos com uma lábia cheia de malemolência;

e a dona brigona, que fica na porta vigiando tudo e todos, pronta para fazer um escarcéu caso alguém ande no “seu” corredor...
... e também tem as irmãs Sá...

Ah, as irmãs Sá.

Ela são uma benção para qualquer agrupamento humano, sempre prontas a enganar, a causar discórdia e deixar todos bem próximo da vontade inumana de matar alguém.
Faz um tempo, percebemos que os gastos da luz comum dispararam. Fizemos verificações em todos os andares buscando a causa e nada. Foram meses nesta cruzada mal sucedida, até que, na simples troca de uma lâmpada, descobrimos a explicação.
As irmãs Sá, sozinhas, com ferramentas rudimentares, escavaram a parede da cozinha delas por dentro, por trás de um móvel, e cuidadosamente puxaram um gato do interruptor da luz comum, do corredor, para a casa delas.
As bandidas não conhecem nada de eletricidade, nunca trocaram um fusível, mas fizeram um serviço tão bem feito que ninguém descobriu. Podiam ter morrido queimadas, podiam ter incendiado o prédio, mas, ao invés disso, quase ganharam um Nobel da Eletrônica.
Agora imagine que são duas velhas carcomidas: uma anda da muletas, quase sempre cheira a cerveja e mal dá conta de sair na rua. A outra já quase não enxerga mais e fuma cachimbo direto, na moral - e, mesmo assim, realizaram a pequena façanha.
Claro que foram denunciadas, levaram bronca na reunião de condomínio, mas seguiram a vida como se nada tivesse acontecido, e tudo deveria ficar tranquilo, só que não, pois belo dia resolveram trocar uma torneira na cozinha...
As duas MacGyveres, usando somente bengalas e cachimbo, conseguiram tirar a torneira da pia, tudo certinho, mas só esqueceram de um detalhe, no caso, detalhe fundamental, de desligar o registro de água do apartamento.

Resultado: inundaram o apartamento todo.
Mas resolveram a questão da forma muito simples:

Com um rodo, escoaram a água para o vão do elevador recém reformado, que estava no térreo, e toda a água da inundação caiu sobre ele e, claro, o bicho pifou.

Toda a parte elétrica deu curto e ficamos sem elevador por 30 dias.
As Sá foram intimadas a pagar o reparo, mas alegaram que não tinham grana para pagar pois, por nossa culpa, a conta de luz delas tinha aumentado.

Juro que rimos para não chorar e pagamos, claro, ou ficariam só na escada, e ainda teríamos que carregar a duas, se passassem mal.
Isso tudo sem mencionar os meses de condomínio e taxas extras atrasadas, os gritos com os porteiros, a ausênciade absoluta de educação. Para completar, passaram a escarrar no piso do elevador novo, depois de reparado o dano que ELAS causaram.
Esses são os fatos, preto no branco, mas agora vamos ao cinza que permeia toda a história.

Na última reunião de condomínio compareceu dona Graziela, que quase nunca vi. Quando começamos a tratar das Sá, d. Graziela contou um pouco da história delas e, bem...
“As duas vieram mocinhas morar aqui, com mãe e pai. A família sempre foi pequena, e menor ficou quando a mãe morreu de forma súbita, encontrada morta no chão da sala, fulminada pelo coração falhento...”
“...deviam ter nem 15 anos e sofreram muito, apegadas que eram à mãe. O pai sempre estivera fora, trabalhando, viajando pelo interior. Quando a mulher morreu ele quase nem veio, nem deu muita bola, da mesma forma que não deu bola alguma às meninas. ...”
“...contratou uma empregada, que passou a criar as meninas, e foi viver. Não demorou, estava casado novamente, vivendo feliz, sendo pai presente e cheio de filhos novos. Já as filhas antigos, parece, foram enterradas junto com a mãe....”
“... as meninas seguiram no prédio, criadas pela estranha que não tinha qualquer espécie de carinho por elas. Foram criadas da forma que dava, e assim seguiram. O pai pagava o básico e cada vez pagava menos. Um dia, já taludas, a empregada foi embora e ficaram novamente sós...”
“...elas começaram a trabalhar e o pai cortou o único elo que havia entre eles, o do bolso. Como compensação, deu o apartamento a elas.

As Sá trabalharam muito, sem ganhar muito, não tiveram filhos e foram sempre sós. Receberam boas ofertas pelo imóvel, mas nunca venderam.”
“Da família nova do pai nunca receberam um oi. O homem morreu e só foram avisadas dias depois. Nem conseguiram ir ao enterro. Então elas vivem lá, trancadas, remoendo as mágoas e as tristezas, e a gente nem pode imaginar o quanto deve ser ruim essa vida...”
“...elas não vendem o bem, não saem, mesmo devendo os olhos da cara, porque esse apartamento é a única lembrança que resta de quando elas foram felizes. Talvez por isso elas sejam tão ruins com o prédio e com os moradores, porque tudo de bom e de ruim que ele representa.”
Quando d. Graziela acabou de contar, só restava silêncio no salão de festa. Nos olhávamos sem entender o que sentíamos, se justificava ou não as atitudes sempre absurdas.

A reunião acabou silenciosa, meio tristonha.
E quem saberá ao certo a medida da dor que cabe entre aquelas paredes, ou a raiva que sempre surge vinda daquele 9º andar?

As lembranças delas crianças, sendo amadas, e depois rejeitadas a não servir na vida da única pessoa a quem ainda podiam chamar família...
Se sim ou não, jamais terei como julgar, mas juro que passei a olhar as irmãs Sá com outra cor, mesmo diante do ranger de dentes de sempre, nos encontros fugazes no elevador, reparado e, agora, constantemente escarrado.
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